terça-feira, 16 de novembro de 2010

O menino do pijama listrado - cap. 3 [O caso perdido]

O CASO PERDIDO

Bruno estava certo de que teria feito muito mais sentido se eles estivessem deixado Gretel para trás, em Berlim, para cuidar da casa, porque ela era só encrenca. Na verdade ele já a ouvira sendo descrita como Encrenca Desde o Primeiro Dia.
Gretel era três anos mais velha do que Bruno e fizera questão de deixar claro, desde que ele conseguia se lembrar, que, quanto aos assuntos do mundo, especialmente os eventos do mundo que diziam respeito a eles dois, ela estava no comando. Bruno não gostava de admitir que tinha um pouco de medo dela, mas se fosse honesto consigo mesmo – e ele sempre tentava ser – teria de reconhecê-lo.
Gretel tinha hábitos desagradáveis, como era de se esperar das irmãs. Ela passava muito tempo no banheiro durante as manhãs, por exemplo, e não parecia se importar que Bruno ficasse do lado de fora, pulando ora de um pé ora de outra, desesperado para usar o banheiro.
A irmã tinha uma grande coleção de bonecas dispostas em prateleiras ao redor do quarto, que observavam Bruno quando ele entrava e o seguiam por lá, registrando tudo o que ele fazia. O menino tinha certeza de que, se fosse explorar o quarto da irmã enquanto ela estivesse fora de casa, as bonecas lhe contariam tudo o que ele tivesse feito. Ela tinha também algumas amigas bastante desagradáveis, que pareciam achar muito inteligente fazer gracinhas a respeito dele, algo que Bruno jamais faria se fosse três anos mais velho do que ela. Todas as amigas desagradáveis de Gretel, acima de qualquer coisa, pareciam se deliciar em atormentá-lo, dizendo-lhe coisas inapropriadas sempre que a mãe ou Maria não estavam por perto.
“O Bruno não tem nove anos, mas apenas seis”, dizia uma monstrenga em especial, repetindo de novo e de novo numa voz cantarolante, dançando e cutucando-o entre as costelas.
“Não tenho seis anos, tenho nove”, ele protestava, tentando escapar.
“Então por que você é tão pequeno?”, indagava o mostro. “Todos os outros meninos de nove anos são maiores que você.”
Isso era verdade, e também um assunto muito delicado para Bruno. O fato de ele não ser tão alto quanto qualquer outro menino de sua classe era fonte de constantes aborrecimentos. Na verdade, ele batia na altura dos ombros dos outros meninos. Quando caminhava pelas ruas com Karl, Daniel e Martin, as pessoas às vezes o tomavam pelo irmão mais novo de algum deles, mas, na verdade, era o segundo mais velho.
“Então você deve ter apenas seis anos”, insistia a monstrenga, e Bruno saía correndo para fazer seus exercícios de alongamento, torcendo para no dia seguinte acordar uns trinta ou quarenta centímetros mais alto.
O lado bom de não estar mais em Berlim era que nenhuma delas estaria por perto para atormentá-lo. Talvez, se fossem obrigados a ficar na casa nova por algum tempo, quem sabe até um mês, quando retornassem à casa antiga, ele já tivesse crescido bastante, e então elas não poderiam mais maltratá-lo. Era algo a se pensar, afinal, se ele pretendia seguir a recomendação da mãe e fazer o melhor de uma situação ruim.
Bruno correu até o quarto de Gretel sem bater na porta e a descobriu dispondo a civilização de bonecas nas muitas prateleiras pelo quarto.
“O que está fazendo aqui?”, ela gritou, dando meia-volta. “Não sabe que não se deve entrar no quarto de uma dama sem antes bater na porta?”
“É claro que você não trouxe todas as suas bonecas para cá, não?”, perguntou Bruno, que desenvolvera o hábito de ignorar a maioria das perguntas da irmã e fazer suas próprias perguntas em vez de responder às dela.
“Claro que trouxe”, ela respondeu. “Pensou que eu as deixaria em casa? Ora, pode levar semanas até que voltemos para lá.”
“Semanas?”, disse Bruno, parecendo desapontado, mas secretamente satisfeito, pois já se resignara com a idéia de passar um mês ali. “Acha mesmo que levará tanto tempo?”
“Bem, eu perguntei ao papai e ele disse que ficaremos aqui pelo futuro previsível.”
“Mas o que é o futuro previsível exatamente?”, perguntou Bruno, sentando na lateral da cama dela.
“Quer dizer daqui a semanas”, disse Gretel com um aceno inteligente de cabeça. “Talvez até mesmo três semanas.”
“Então não é tão mal”, disse Bruno. “Desde que seja apenas pelo futuro previsível e não chegue a completar um mês. Eu detesto aqui.”
Gretel olhou para o irmão mais novo e descobriu-se concordando com ele, para variar. “Sei o que quer dizer”, disse ela. “Aqui não é muito agradável, não é?”
“É horrível”, disse Bruno.
“De fato é”, disse Gretel, reconhecendo a observação do irmão. “Agora está horrível. Mas depois que dermos um jeito na casa, provavelmente não será mais tão ruim. Eu ouvi o papai dizer que quem quer que tenha morado aqui em Haja-Vista perdeu o emprego bem rápido e não teve tempo de ajeitar o lugar para nós.”
“Haja-Vista?”, perguntou Bruno. “O que é um Haja-Vista?”
“Não é um Haja-Vista, Bruno”, disse Gretel num suspiro. “É só Haja-Vista.”
“Bem, e o que é Haja-Vista, afinal?”, repetiu ele. “Haja-Vista o quê?”
“É o nome da casa”, explicou Gretel. “Haja-Vista.”
Bruno parou para pensar a respeito disso. Ele não vira nenhuma placa do lado de fora, informando qual era o nome do lugar, nem havia nada escrito na porta da frente. Sua própria casa em Berlim não tinha nome; era apenas chamada de número 4.
“Mas o que isso quer dizer?”, perguntou ele exasperado. “Haja-Vista por quê?”
“Haja-Vista por causa das pessoas que moraram aqui antes de nós, eu acho”, disse Gretel. “Deve ter algo a ver com o fato de elas terem sumido porque não fizeram um serviço muito bom e alguém botou elas para fora e chamou alguém capaz de cumprir as tarefas direito.”
“Quer dizer o papai.”
“É claro”, disse Gretel, que sempre falava sobre o pai como alguém incapaz de causar qualquer mal e que jamais ficava bravo e sempre vinha dar-lhe um beijo de boa-noite antes de ela ir dormir, o que, se Bruno fosse realmente justo e deixasse de lado a tristeza casada pela mudança, teria de admitir que o pai fazia por ele também.
“E então nós estamos em Haja-Vista porque os coitados que moravam aqui antes foram embora?”
“Exatamente, Bruno”, disse Gretel. “Agora saia de cima da minha cama. Você está amassando tudo.”
Bruno saltou da cama e aterrissou num carpete, numa pancada surda. Ele não gostou do ruído que ouviu. Era muito oco, e o menino imediatamente decidiu que seria melhor não sair pulando pela casa com muita freqüência, ou ela era capaz de desabar sobre suas orelhas.
“Não gosto daqui”, disse pela centésima vez.
“Eu sei que não gosta”, disse Gretel. “Mas não há nada que possamos fazer a respeito, não é?”
“Eu sinto falta de Karl e Daniel e Martin”, disse Bruno.
“E eu tenho saudades de Hilda e Isobel e Louise”, disse Gretel, e Bruno tentou lembrar qual das garotas era a monstrenga.
“Acho que as outras crianças não parecem nem um pouco amigáveis”, disse Bruno, e Gretel imediatamente parou de ajeitar uma das bonecas mais horrendas na prateleira e se voltou de frente para ele, encarando-o.
“O que você disse?”
“Disse que acho que as outras crianças não parecem nem um pouco amigáveis”, repetiu ele.
“As outras crianças?”, disse Gretel, parecendo confusa. “Que outras crianças? Eu não vi nenhuma criança.”
Bruno correu os olhos pelo quarto. Havia uma janela, mas o quarto de Gretel ficava do outro lado do corredor, de frente para o dele, portanto a janela dava para uma direção completamente diferente. Tentando disfarçar, ele caminhou casualmente até a janela. Meteu as mãos nos bolsos das calças curtas e tentou assoviar uma música que conhecia, enquanto evitava olhar para a irmã.
“Bruno?”, perguntou Gretel. “O que você pensa que está fazendo? Ficou maluco?”
Ele continuou a caminhada e o assovio e prosseguiu evitando-a até chegar à janela, a qual, por um golpe de sorte, era também baixa o bastante para que ele pudesse enxergar através dela. Bruno viu do lado de fora o carro no qual haviam chegado, bem como três ou quatro outros veículos que pertenciam aos soldados que trabalhavam para o pai, alguns dos quais estavam por lá fumando e rindo de alguma coisa enquanto olhavam nervosos para a casa. Mais além, via-se a saída que vinha da estrada e, ao longe, uma floresta que parecia pronta para ser explorada.
“Bruno, você poderia, por favor, me explicar o que quis dizer com esse último comentário?”, pediu Gretel.
“Tem uma floresta ali”, disse Bruno, ignorando-a.
“Bruno!”, disse Gretel, ríspida, marchando na direção dele com tamanha velocidade que o garoto saltou da janela e se recostou na parede.
“O que foi?”, ele perguntou, fingindo não saber do que ela estava falando.
“As outras crianças”, disse Gretel. “Você disse que não parecem nem um pouco amigáveis.”
“E não parecem mesmo”, disse Bruno, sem querer julgá-las antes de conhecê-las, mas se deixando levar pelas aparências, coisa que a mãe já lhe dissera diversas vezes para não fazer.
“Mas quais outras crianças?”, perguntou Gretel. “Onde elas estão?”
Bruno sorriu e caminhou na direção da porta, indicando a Gretel que o seguisse. Ela soltou um suspiro fundo ao fazê-lo, parando para depositar a boneca na cama, mas mudou de idéia e a pegou novamente, apertando o brinquedo contra o peito, enquanto entrava no quarto do irmão, onde quase foi derrubada por Maria, que corria para fora segurando algo muito parecido com um camundongo morto.
“Elas estão lá fora”, disse Bruno, que havia chegado à sua janela outra vez e estava olhando através dela. Ele não se voltou para ver se Gretel estava no quarto; estava ocupado demais observando as crianças. Por alguns instantes até se esqueceu de que ela estava ali.
Gretel ainda estava um pouco atrás e queria desesperadamente olhar por si mesma, mas havia algo no jeito como ele falara e no jeito com que observava que a fez sentir-se nervosa. Bruno jamais fora capaz de enganá-la quanto a coisa alguma, e ela tinha certeza de que o irmão não a estava enganando agora, mas o jeito como ele olhava para fora lhe dava a sensação de que talvez não quisesse ver aquelas crianças, afinal. Ela engoliu em seco e fez uma prece silenciosa para que, de fato, voltassem logo a Berlim no futuro previsível e não tivessem que esperar um mês, conforme Bruno sugerira.
“E então?”, ele disse, voltando-se para ela e vendo-a parada na porta, agarrada à boneca, o cabelo dourado dividido simetricamente em dois rabos-de-cavalo, caídos nos ombros, convidando a um puxão. “Não quer vê-las?”
“Claro que quero”, respondeu ela, caminhando hesitante na direção dele. “Saia da frente, então”, disse, afastando-o com o cotovelo.
Aquela tarde em Haja-Vista era de um dia brilhante e ensolarado, e o sol reapareceu de trás de uma nuvem, justo no instante em que Gretel olhava para fora da janela, mas, após um instante, seus olhos se ajustaram à luz; o sol tornou a desaparecer, e ela viu a respeito do que Bruno estivera falando.
 

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