terça-feira, 16 de novembro de 2010

O menino do pijama listrado - cap. 8 [Por que a avó foi embora abruptamente]

POR QUE A AVÓ FOI EMBORA ABRUPTAMENTE

As duas pessoas de quem Bruno mais sentia saudades eram o avô e a avó. Eles moravam juntos num pequeno apartamento próximo às bancas de frutas e legumes, e, na época em que Bruno se mudou para Haja-Vista, o avô tinha quase setenta e três anos, o que, para os padrões do menino, fazia dele praticamente o homem mais velho do mundo. Certa tarde, Bruno calculara que, se viesse a própria vida de novo e de novo por oito vezes, ainda assim seria um ano mais novo do que o avô.
O avô passara a vida toda cuidando de um restaurante no centro da cidade, e um de seus empregados era o pai do amigo de Bruno, Martin, que trabalhava como chef de cozinha . Embora o avô não cozinhasse mais ou atendesse as mesas, ainda passava lá a maior parte de seus dias, sentado no bar durante as tardes, conversando com os fregueses, fazendo suas refeições à noite e lá ficando até a hora de fecha, rindo com os amigos.
A avó jamais parecia velha em comparação às avós dos outros meninos. Na verdade, quando Bruno descobriu a idade que ela tinha – sessenta e dois –, ficou impressionado. Ela conhecera o avô quando ainda era jovem, após uma de suas apresentações, e de alguma maneira ele a convenceu a se casarem, apesar de todos os defeitos dele. O cabelo dela era comprido e ruivo, surpreendentemente parecido com o da nora, e os olhos, verdes, o que ela atribuía ao sangue irlandês disperso pela família. Bruno sempre sabia quando as festas familiares atingiam o ápice de animação, porque a avó ficava rondando o piano até que alguém se sentasse para tocar e pedisse a ela para cantar.
“Como é?”, fazia ela, levando a mão ao peito como se a idéia de cantar já lhe tirasse o fôlego. “É uma canção o que estão pedindo? Ora, eu não poderia, imagine. Infelizmente, meu jovem, meus dias de cantoria já são coisa do passado.”
“Cante! Cante!”, pediam todos os convivas, e, após a devida pausa – que podia chegar a dez ou doze segundos –, ela afinal cedia e se voltava para o jovem ao piano e dizia rapidamente numa voz bem-humorada:
“La vie en rose, mi bemol maior. E tente acompanhar as mudanças.
As festas na casa de Bruno eram sempre dominadas pela cantoria da avó, que por alguma razão parecia coincidir com o momento em que a mãe saía da área principal da festa e ia para a cozinha seguida por algumas de suas próprias amigas. O pai sempre ficava para escutar o Bruno também, pois não havia nada de ele gostasse mais do que escutar a avó se entregar à música e libertar todo o poder de sua voz, arrancando os aplausos dos convidados ao final. Além disso, La vie en rose lhe dava arrepios e fazia os cabelos da nuca ficarem em pé.
A avó cultivava a idéia de que um dia Bruno ou Gretel pudessem seguir seus passos sobre o palco, e, em todo Natal e em toda festa de aniversário, ela inventava uma pequena peça para ser apresentada pelos três à mãe, ao pai e ao avô. Ela própria escrevia as peças e, conforme a opinião de Bruno, sempre guardava para si as melhores falas, embora ele não se importasse muito com isso. Em geral havia música em alguma parte – “É uma canção o que estão pedindo?”, perguntava ela primeiro – e uma oportunidade para Bruno fazer um truque de mágica e para Gretel dançar. A peça costumava terminar com Bruno recitando um longo poema de um dos Grandes Poetas, palavras que o menino achava muito difíceis de compreender, mas que de alguma maneira soavam mais e mais bonitas à medida que ele as lia.
No entanto, essa não era a melhor parte dessas pequenas funções. A melhor parte era que a avó preparava um figurino para Bruno e Gretel. Não importava qual fosse o papel, não importavam quantas falas ele tivesse, se pouco numerosas em relação às da avó e da irmã, Bruno sempre acabava vestido de príncipe, ou de xeque árabe, ou até mesmo, numa ocasião, de gladiador romano. Havia coroas e, quando não havia coroas, havia lanças. E quando não havia lanças, havia chicotes e turbantes. Ninguém sabia qual seria a próxima invenção dela, mas, uma semana antes do Natal, Bruno e Gretel eram convocados até a sua casa diariamente para ensaiar.
É claro que a última peça que eles encenaram havia terminado desastrosamente e Bruno se lembrava com tristeza daquela noite, embora ao soubesse ao certo o que havia causado a discussão.
Cerca de uma semana antes, a casa passara por um grande frenesi, que tinha algo a ver com o fato de que o pai deveria agora ser chamado de “comandante” por Maria, Lars, o cozinheiro e o mordomo, bem como por todos os soldados que entravam e saíam de lá e usavam a casa – ao que parecia a Bruno – como se fossem os donos do lugar, e não ele. A animação já durava semanas. Primeiro vieram o Fúria e a linda mulher loira para o jantar, o que causara uma verdadeira paralisação na casa, e, depois, essa história de chamar o pai de “comandante”. A mãe dissera a Bruno para felicitar o pai, o que ele havia feito, embora, se Bruno fosse honesto consigo mesmo (o que ele sempre tentava ser), não estivesse bem certo quanto ao motivo da felicitação.
No dia do Natal, o pai vestiu o uniforme novo, todo engomado e passado, o mesmo que ele vestia todos os dias agora, e toda a família aplaudiu quando ele apareceu assim pela primeira vez. Era mesmo algo especial. Comparado aos outros soldados que entravam e saíam da casa, o pai se destacava, e eles pareciam respeitá-lo ainda mais. A mãe foi até ele, beijou-lhe a bochecha e passou a mão pelo seu peito, comentando como era vistoso o tecido. Bruno ficou particularmente impressionado com todas as condecorações no uniforme e lhe foi permitido usar o quepe por um curto período, desde que suas mãos estivessem limpas ao tocá-lo.
O avô ficou muito orgulhoso ao ver o filho de uniforme, mas a avó parecia ser a única que não estava impressionada. Depois de servido o jantar, e depois que ela e Gretel e Bruno tinham apresentado o seu mais novo espetáculo, ela se sentou, triste, numa das poltronas, e olhou para o filho, balançando a cabeça como se ele fosse uma grande decepção para ela.
“Eu me pergunto – será que foi nisso que eu errei com você, Ralf?”, disse ela. “Imagino se todas aquelas performances que eu exigi de você o levaram a isso. Fantasiar-se de fantoche.”
“Ora, mamãe”, disse o pai num tom de voz extremamente tolerante. “A senhora sabe que agora não é o momento certo.”
“Você fica aí no seu uniforme”, prosseguiu ela, “como se isso o tornasse alguém especial. Nem se importa com o seu verdadeiro significado. O que ele representa.”
“Nathalie, nós já conversamos sobre isso”, disse o avô, embora todos soubessem que quando a avó tinha algo a dizer, ela sempre dava um jeito de dizê-lo, não importava quão impopulares fossem suas palavras.
“Você conversou, Mathias”, disse a avó. “Eu era simplesmente a parede a quem você dirigia suas palavras. Como sempre.”
“Estamos numa festa, mamãe”, disse o pai, suspirando. “E é Natal. Não vamos estragar as coisas.”
“Eu me lembro de quando começou a Grande Guerra”, disse o avô orgulhoso, olhando para o fogo e balançando a cabeça. “Eu me lembro de quando você voltou para casa dizendo que havia se alistado e eu tive certeza de que lhes aconteceria algum mal.”
“O que aconteceu a ele foi um grande mal, Mathias”, insistiu a avó. “Olhe para ele e comprove.”
“E olhe para você agora”, prosseguiu o avô, ignorando-a. “Fico tão orgulhoso de vê-lo promovido a uma posição de tamanho destaque. Ajudando seu país a recuperar o orgulho depois de tanto sofrimento que nos foi imposto. Os castigos muito acima e além...”
“Céus, escute o que está dizendo!”, gritou a avó. “Não sei qual dos dois é mais tolo.”
“Mas, Nathalie”, disse a mãe tentando acalmar um pouco os ânimos, “não acha que Ralf ficou lindo no uniforme novo?”
“Se ficou lindo?”, perguntou a avó, inclinando-se para a frente e encarando a nora como se esta tivesse perdido o juízo. “Lindo, você disse? Menina tola! É isso que considera de importância neste mundo? Ficar linda?”
“Eu fico lindo na minha fantasia de animador de circo?”, perguntou Bruno, que naquela noite estava fantasiado assim para a festa – a roupa vermelha e preta de um animador de circo – e ficara muito orgulhoso de si mesmo ao ver-se vestido. Assim que falou, arrependeu-se, pois todos os adultos voltaram os olhares para ele e Gretel, como se tivessem esquecido de que os dois estavam lá.
“Crianças, lá para cima”, disse a mãe rapidamente. “Vão para os seus quartos.”
“Mas nós não queremos ir”, protestou Gretel. “Não podemos ficar brincando aqui embaixo?”
“Não, crianças”, insistiu ela. “Vão para o andar de cima e fechem a porta ao saírem.”
“É só isso que interessa a vocês soldados, afinal”, disse a avó, ignorando completamente as crianças. “Ficar bonitos nos uniformes alinhados. Fantasiando-se para fazer as coisas terríveis, terríveis que vocês fazem. Eu me envergonho. Mas culpo a mim mesma, Ralf, não a você.”
“Crianças, subam já!”, disse a mãe, batendo palma, e desta vez os dois não tiveram escolha senão obedecer.
Mas, ao invés de subir direto para os quartos, eles fecharam a porta e sentaram-se na escada no andar de cima, tentando escutar o que os adultos diziam. Entretanto, as vozes da mãe e do pai estavam abafadas e difíceis de entender, a do avô nem se ouvia, e a da avó arrastava-se, surpreendentemente. Afinal, após alguns minutos, a porta se abriu de um só golpe, e Gretel e Bruno correram escada acima, enquanto a avó pegava o casaco que deixara pendurado na entrada.
“É uma vergonha!”, gritou ela antes de sair. “Envergonha-me que um filho meu seja...”
“Um patriota”, gritou o pai, que talvez jamais tivesse aprendido aquela regra sobre não interromper sua mãe.
“Que belo patriota!”, gritou ela. “As pessoas que você recebe nesta casa para o jantar. Fico com nojo. E vê-lo nesse uniforme me dá vontade de arrancar os olhos da cara!”, acrescentou antes de sair abruptamente e bater a porta atrás de si.
Bruno vira a avó poucas vezes desde então e não tivera chance de se despedir dela antes de vir para Haja-Vista, mas sentia muito a sua falta e decidiu escrever-lhe uma carta.
Naquele dia ele se sentou, munido de papel e tinta, e contou a ela como estava infeliz lá e o quanto queria estar de volta a Berlim. Contou a ela sobre a casa, e o jardim, e o banco com a placa, e a cerca alta, e os postes telegráficos de madeira, e os rolos de arame farpado, e o chão duro que se estendia além deles, e as cabanas, e os pequenos prédios, e as colunas de fumaça, e os soldados, mas contou a ela principalmente sobre as pessoas que moravam lá, vestindo seus pijamas listrados e seus bonés de pano, e então contou a ela o quanto sentia saudades e concluiu a carta com “seu neto querido, Bruno”.

O menino do pijama listrado - cap. 7 [Como mãe levou credito por algo que não fez]

COMO A MÃE LEVOU O CRÉDITO POR ALGO QUE NÃO FEZ

Várias semanas depois de Bruno ter chegado a Haja-Vista com sua família e sem nenhuma perspectiva de uma visita de Karl, Daniel ou Martin no horizonte, ele decidiu que era melhor inventar alguma maneira de se divertir, ou então acabaria enlouquecendo aos poucos.
Bruno conhecera apenas uma pessoa que ele considerava louca, e era herr Roller, um homem mais ou menos da idade de seu pai, que morava na esquina do seu quarteirão da casa velha em Berlim. Era freqüentemente visto na rua andando para lá e para cá a qualquer hora do dia ou da noite, discutindo sozinho, exaltado. Às vezes, no meio dessas discussões, a disputa saída do controle e o homem tentava atingir a sombra que ele próprio projetava na parede. De tempos em tempos herr Roller lutava com tamanha fúria que os punhos sangravam de tanto bater contra as paredes de tijolo, e então ele caía de joelhos, chorando alto e batendo as mãos contra a cabeça. Em algumas ocasiões Bruno o ouvira proferindo aquelas palavras que ele próprio não podia usar e, nessas vezes, tinha que se controlar para não rir.
“Não ria do pobre herr Roller”, dissera-lhe a mãe numa tarde em que ele relatara sua última aventura. “Você não faz idéia do que ele passou nessa vida.”
“Ele é louco”, disse Bruno, descrevendo com o dedo círculos ao lado da cabeça e assoviando para indicar quão louco ele achava ser o homem. “Outro dia ele se aproximou de um gato e o convidou para tomar o chá da tarde.”
“E o que disse o gato?”, perguntou Gretel, que estava preparando um sanduíche na cozinha.
“Nada”, explicou Bruno. “Era um gato.”
“Estou falando sério”, insistiu a mãe. “Franz era um jovem maravilhoso – eu o conheci quando ainda era uma garotinha. Era gentil e atencioso e atravessava o salão de dança como se fosse Fred Astaire. Mas sofreu um terrível ferimento durante a Grande Guerra, um ferimento na cabeça, e é por isso que age assim agora. Não é motivo de piada. Vocês não fazem idéia do que passaram os jovens daquela época. Não imaginam o sofrimento dele.”
Bruno tinha, então, apenas seis anos e não sabia ao certo a que a mãe estava se referindo. “Foi há muitos anos”, explicou ela quando ele perguntou a respeito. “Antes de você nascer. Franz era um dos jovens que lutaram por nós nas trincheiras. Seu pai o conhecia muito bem naquela época; acredito que eles serviram juntos.”
“E o que aconteceu com ele?”, perguntou Bruno.
“Não importa”, disse a mãe. “A guerra não é um assunto digno de conversa. Temo que em breve passaremos tempo demais conversando sobre a guerra.”
Aquilo tudo ocorrera três anos antes de todos eles chegarem a Haja-Vista, e Bruno não havia pensado muito em herr Roller nesse ínterim, mas de repente ele se convenceu de que, se não tomasse alguma atitude, se não fizesse alguma coisa que lhe ocupasse a mente, então, antes que pudesse perceber, acabaria igualmente vagando pelas ruas e lutando consigo mesmo e convidando animais domésticos para ocasiões sociais.
Para manter-se distraído, Bruno passou uma longa manhã e a tarde de um sábado criando para si uma nova diversão. A certa distância da casa – do lado de Gretel e impossível de se ver da janela de seu próprio quarto – havia um grande carvalho, de tronco bastante alentado. Uma árvore alta, de galhos robustos, fortes o suficiente para suportar um menino pequeno. Parecia tão velha que Bruno estava certo de que fora plantada em algum momento da baixa Idade Média, um período que ele estudara há pouco tempo e descobrira ser muito interessante – em especial as partes que falavam de cavaleiros que saíam para terras desconhecidas em busca de aventuras e desvendavam mistérios curiosos durante o processo.
Bruno precisava apenas de duas coisas para criar seu divertimento: um pedaço de corda e um pneu. A corda foi bastante fácil de encontrar, pois havia rolos no porão da casa e não demorou para que ele fizesse algo extremamente perigoso: encontrando uma faca afiada, cortou tantos pedaços de corda julgou serem necessários. Levou-os até o carvalho e deixou-os no chão para utilizá-los futuramente. O pneu já era outra história.
Naquela manhã em particular, nem a mãe nem o pai estavam em casa. A mãe saíra cedo para tomar o trem até uma cidade próxima e passaria o dia respirando outros ares, enquanto o pai fora visto pela última vez indo na direção das cabanas e das pessoas que ficavam à distância, do outro lado da janela de Bruno. Mas, como de costume, havia muitos caminhões e jipes dos soldados estacionados nas proximidades da casa, e, embora ele soubesse que seria impossível roubar um pneu de qualquer um deles, existia sempre a possibilidade de encontrar um estepe em algum lugar.
Quando estava saindo, viu Gretel conversando com o tenente Kotler e, sem grande entusiasmo, decidiu que seria ele a pessoa certa a quem pedir o favor. O tenente Kotler era o jovem oficial que Bruno vira durante seu primeiro dia em Haja-Vista, o soldado que aparecera no andar de cima da casa e o encarara por um instante antes de acenar com a cabeça e seguir caminho. Bruno o havia visto em muitas ocasiões desde então – ele entrava e saía da casa como se fosse o dono do lugar, e parecia óbvio que o escritório do pai não era proibido para ele -, porém os dois não haviam conversado muito. Bruno não sabia ao certo por quê, mas sabia que não gostava do tenente Kotler. Havia uma atmosfera ao redor dele que fazia com que o menino sentisse frio e tivesse vontade de vestir um macacão. Ainda assim, não havia mais a quem pedir e então marchou na direção deles para dizer oi, reunindo toda a confiança de que era capaz.
Na maioria dos dias o jovem tenente tinha um aspecto muito vistoso, desfilando por ali num uniforme que parecia ter sido passado enquanto ele o vestia. As botas pretas sempre reluziam de tão polidas e o cabelo loiro era repartido de lado e mantido perfeitamente no lugar por alguma coisa que destacava as marcas do pente, parecendo um campo recém-arado. Ele também usava tanta loção pós-barba que tornava possível farejar sua aproximação a uma distância considerável. Bruno aprendeu a evitar encontrá-lo no sentido contrário ao vento, ou acabaria arriscando-se a desmaiar por causa do cheiro.
Naquela manhã em particular, entretanto, por ser sábado e por causa do sol intenso, ele não estava tão impecavelmente arrumado. Ao invés disso, vestia um paletó branco sobre as calças e o cabelo pendia sobre a testa, exausto. Os braços eram surpreendentemente bronzeados e tinham o tipo de músculos que Bruno desejava para si. Ele parecia tão jovem naquele dia que Bruno até ficou surpreso; na verdade ele o fazia lembrar dos meninos mais velhos da escola, aqueles que sempre evitava. O tenente Kotler estava envolvido numa conversa com Gretel, e o quer que estivesse dizendo devia ser irresistivelmente engraçado, pois ela ria alto e enrolava o cabelo ao redor dos dedos, formando anéis.
“Olá”, disse Bruno ao se aproximar deles, e Gretel lançou-lhe um olhar irritado.
“O que você quer?”, perguntou ela.
“Eu não quero nada”, devolveu Bruno, fuzilando-a com o olhar. “Só vim dizer oi.”
“Por favor, desculpe o meu irmão mais novo, Kurt”, disse Gretel ao tenente Kotler. “Sabe como é, ele só tem nove anos.”
“Bom dia, homenzinho”, disse Kotler, estendendo a mão e – para desgosto do menino – passando-a pelo cabelo de Bruno, um gesto que o deixou com vontade de empurrá-lo no chão e saltar sobre sua cabeça. “E qual motivo o tira da cama tão cedo numa manhã de sábado?”
“Não tem nada de ‘tão cedo’”, disse Bruno. “São quase dez horas.”
O tenente Kotler deu de ombros. “Quando eu tinha a sua idade, minha mãe não conseguia me tirar da cama antes da hora do almoço. Ela dizia que eu jamais cresceria e ficaria forte, se passasse a vida toda dormindo.”
“Bem, ela parece ter se enganado completamente, não?”, Gretel deu um sorriso afetado. Bruno olhou enojado para ela. A menina fazia uma voz de boba que dava a impressão de que ela não tinha nada da cabeça. Não havia nada que Bruno quisesse mais do que deixar os dois para trás sem participar da conversa deles, mas não tinha escolha, a não ser priorizar os seus interesses e pedir ao tenente Kotler o impensável. Um favor.
“Eu imaginava se poderia lhe pedir um favor”, disse Bruno.
“Pode pedir”, disse o tenente Kotler, fazendo Gretel rir de novo, embora isso não fosse especialmente engraçado.
“Eu queria saber se não há algum pneu estepe sobrando”, prosseguiu Bruno. “Quem sabe de um dos jipes. Ou de um dos caminhões. Algum que vocês não estejam usando.”
“O único pneu que eu vi sobrando por aqui nos últimos tempos pertence ao sargento Hoffschneider, e ele o traz ao redor da cintura”, disse o tenente Kotler, os lábios assumindo uma forma parecida com um sorriso. Para Bruno aquilo não fazia o menor sentido, mas parecia divertir tanto Gretel que ela estava quase dançando.
“Bem, ele está usando o pneu?”, perguntou Bruno.
“O sargento Hoffschneider?”, perguntou o tenente Kotler. “Temo que sim. Ele é muito apegado ao seu estepe sobressalente.”
“Chega, Kurt”, disse Gretel, secando os olhos. “Ele não entende. Só tem nove amos.”
“Dá para você ficar quieta, por favor?”, gritou Bruno irritado, encarando a irmã. Já era ruim o bastante ter que vir ate o tenente Kotler pedir-lhe um favor, mas ficava ainda pior com a irmã provocando-o durante a história toda. “Você também só tem doze anos”, acrescentou ele. “Então pare de fingir que é mais velha.”
“Eu tenho quase treze anos, Kurt”, retrucou ela, sem rir, o rosto congelado de pavor. “Farei treze em poucas semanas. Serei uma adolescente. Como você.”
O tenente Kotler sorriu e acenou com a cabeça, mas não disse nada. Bruno voltou os olhos para ele. Se fosse qualquer outro adulto ali na sua frente, ele teria girado os olhos sugerindo que ambos sabiam o quanto as meninas eram bobas, e as irmãs, ainda mais ridículas. Porém não se tratava de qualquer outro adulto. Era o tenente Kotler.
“Enfim”, disse Bruno, ignorando o olhar de ódio que Gretel lhe lançava, “além desse pneu, há mais algum lugar onde eu possa encontrar um estepe sobrando?”
“É claro”, disse o tenente Kotler, que havia parado de sorrir e parecia subitamente entediado. “Mas o que você vai fazer com o pneu afinal?”
“Eu pensei em fazer um balanço”, disse Bruno. “Sabe, com um pneu e um pouco de corda amarrada aos galhos de uma árvore.”
“É claro” disse o tenente Kotler, acenando a cabeça com ar de sabedoria, como se tais coisas fossem apenas memórias distantes agora, ainda que, conforme Gretel dissera, ele próprio não passasse de um adolescente. “Sim, eu mesmo fiz muitos balanços quando era criança. Meus amigos e eu passamos muitas tardes felizes brincando assim.”
Bruno ficou estupefato ao perceber que havia algo em comum entre eles (e ainda mais surpreso em saber que o tenente Kotler já tivera amigos na vida). “O que me diz?”, ele perguntou. “Será que tem algum por aí?”
O tenente Kotler olhou para ele e pareceu estar pensando na resposta, como se não soubesse se iria lhe dar uma resposta direta ou se tentaria irritá-lo como costumava fazer. Mas então ele viu Pavel – o velho que vinha todas as tardes ajudar a descascar os legumes na cozinha antes de vestir o paletó branco e servi-los à mesa – caminhando na direção da casa, e isso pareceu dar-lhe clareza quanto ao que fazer.
“Ei, você!”, gritou ele, acrescentando, então, uma palavra que Bruno não entende. “Venha cá, seu...” Ele disse a tal palavra novamente, e alguma coisa no tom rude com que a entoava fez Bruno se sentir envergonhado e desviar os olhos, não querendo tomar parte no que estava acontecendo.
Pavel veio na direção deles e Kotler falou-lhe com insolência, apesar de ser jovem o bastante para ser seu neto. “Leve este homenzinho até o depósito atrás da casa principal. Enfileirados junto à parede, estão alguns pneus velhos. Ele escolherá um deles, e você o carregará para onde quer que ele lhe peça, entendido?”
Pavel segurou o boné nas mãos diante de si e acenou com a cabeça, fazendo-a abaixar ainda mais. “Sim, senhor”, disse em voz baixa, tão baixa que era como se não tivesse dito nada.
“E depois, quando voltar para a cozinha, lave essas mãos antes de tocar na comida, seu imundo...” O tenente Kotler repetiu a palavra que já tinha usado duas outras vezes e cuspiu um pouco enquanto falava. Bruno procurou com o olhar a irmã, que estivera maravilhada observando os raios do sol refletidos no cabelo do tenente Kotler, mas agora, como ele, parecia bastante incomodada com o que acontecera. Nenhum dos dois havia conversado com Pavel antes, mas sabiam que ele era um bom servente, e os bons serventes, segundo o pai, não nasciam em árvores.
“Pode ir, então”, disse o tenente Kotler, e Pavel voltou-se indicando o caminho até o depósito, seguido por Bruno, que de tempos em tempos olhava para trás na direção de sua irmã e do jovem soldado e sentia um grande ímpeto de voltar e tirar Gretel de lá, apesar de ela ser irritante e egocêntrica e desagradável com ele na maioria das vezes. Esse era o trabalho dela, afinal. Era a irmã dele. Mas ele detestava a idéia de deixá-la a sós com um homem como o tenente Kotler. Não havia outra maneira de dizê-lo: aquele sujeito era absolutamente desprezível.

O acidente aconteceu algumas horas mais tarde, depois que Bruno havia encontrado o pneu adequado, e Pavel o arrastara até o grande carvalho que ficava do lado do quarto de Gretel, e depois que Bruno subiu e desceu e subiu e desceu e subiu e desceu pelo tronco para amarar as cordas bem apertadas ao redor dos galhos e do próprio pneu. Até então, a operação tinha sido um estrondoso sucesso. Ele já havia construído um desses antes, mas naquela ocasião tivera a ajuda de Karl e Daniel e Martin. Desta vez ele estava fazendo tudo sozinho, o que tornava o trabalho certamente mais complicado. E ainda assim ele conseguiu, e em poucas horas estava contente, instalado no centro do pneu e balançando para a frente e para trás como se não tivesse uma única preocupação na vida, embora estivesse ignorando o fato de que aquele era um dos balanços mais desconfortáveis em que já estivera.
Bruno se deitou atravessado no centro do pneu e usou os pés para ganhar impulso a partir do chão. Cada vez que o balanço recuava, erguia-se no ar e quase atingia o tronco da árvore, próximo o suficiente para usar os pés a fim de dar novo impulso, subindo cada vez mais alto e mais rápido a cada balançada. Esse procedimento funcionou muito bem, até que ele escorregou um pouco do pneu, bem na hora em que com os pés dava impulso na árvore e, antes que ele percebesse, seu corpo voltou-se para dentro, e Bruno caiu, com um pé ainda dentro do pneu, enquanto aterrissava de cara contra o chão, provocando um ruído alto e surdo.
Tudo escureceu por um momento e depois retomou o foco. Ele se sentou no chão, bem na hora em que o pneu balançava de volta, atingindo-o na cabeça, o que o fez soltar um gemido e sair do caminho. Quando se levantou, percebeu que o braço e a perna estavam ambos bastante doloridos, pois caíra pesadamente sobre eles, mas não a ponto de ele pensar tê-los quebrado. Inspecionou a mão e viu que estava coberta de arranhões e, quando olhou para o cotovelo, viu que havia nele um belo corte. A perna era o que mais incomodava e, quando olhou para o joelho logo abaixo de onde terminavam as calças curtas, havia ali um enorme talho que parecia estar apenas esperando que ele olhasse, pois, assim que toda a atenção de Bruno foi focalizada no ferimento, este começou a sangrar bastante.
“Oh, céus”, disse Bruno em voz alta olhando para a ferida sem saber o que fazer a seguir. Não precisou ficar indeciso durante muito tempo, uma vez que havia construído o balanço no mesmo lado da casa em que ficava a cozinha, e Pavel, o servente que o havia ajudado a encontrar o pneu, estivera à janela descascando os legumes e viu o acidente acontecer. Quando Bruno olhou para cima de novo, viu Pavel vindo rapidamente em sua direção e, só quando ele chegou, Bruno ficou seguro o bastante para deixar a sensação de embriaguez que o rondava dominá-lo por completo. Ele chegou a desabar, mas desta vez não caiu no chão, pois Pavel o pegou no colo.
“Não sei o que aconteceu”, disse o menino. “Não parecia ser perigoso.”
“Você estava balançando muito alto”, disse Pavel numa voz baixa que imediatamente transmitiu a Bruno uma grande segurança. “Eu vi tudo. Achei que a qualquer momento lhe aconteceria um imprevisto.”
“E aconteceu”, disse Bruno.
“Certamente aconteceu.”
Pavel carregou-o pela grama de volta a casa. Levou-o até a cozinha e o acomodou numa das cadeiras de madeira.
“Onde está minha mãe?”, perguntou Bruno, procurando a primeira pessoa a quem ele buscava quando sofria um acidente.
“Sua mãe ainda não voltou, infelizmente”, disse Pavel, ajoelhando-se no chão diante dele e examinando seu joelho. “Sou o único que está aqui.”
“O que vai acontecer comigo, então?”, perguntou Bruno, sentindo o pânico crescer dentro de si, uma emoção que poderia levá-lo às lágrimas. “É capaz de eu sangrar até a morte.”
Pavel sorriu gentilmente e balançou a cabeça. “Você não vai sangrar até a morte”, disse o servente, puxando um banco e acomodando sobre ele a perna de Bruno. “Fique parado um instante. Há um estojo de primeiros socorros bem ali.”
Bruno observou-o se movimentar pela cozinha, procurar um estojo verde de primeiros socorros debaixo de uma cômoda, trazê-lo e encher uma pequena tigela com água, testando-a antes com a ponta dos dedos para certificar-se de que não estava fria demais.
“Terei de ir ao hospital?”, perguntou Bruno.
“Não, não”, disse Pavel ao retomar a posição anterior, de joelhos, mergulhando um pano seco na tigela e passando-o delicadamente sobre o joelho de Bruno, o que o fez encolher-se de dor, apesar de não doer tanto assim. “É apenas um pequeno corte. Nem precisará de pontos.”
Bruno franziu o cenho e mordeu os lábios nervosamente, enquanto Pavel limpava o sangue da ferida; depois ele pressionou contra ela outro pano, com força, durante alguns minutos. Quando o retirou, com todo o cuidado, o sangramento havia estancado, e ele sacou do estojo de primeiros socorros um pequeno frasco que continha um líquido verde, o qual borrifou sobre a ferida, coisa que doeu consideravelmente e fez Bruno dizer “Ai” sucessivas vezes.
“Não dói tanto assim”, disse Pavel numa voz gentil e delicada. “Não torne as coisas piores, pensando que dói mais do que você realmente está sentindo.”
De alguma maneira isso fez sentido para Bruno e ele resistiu ao ímpeto de dizer “Ai” de novo. Quando Pavel terminou de aplicar o líquido verde, tirou do estojo de primeiros socorros uma bandagem e grudou-a sobre o corte.
“Pronto”, disse ele. “Bem melhor agora, não?”
Bruno acenou com a cabeça e envergonhou-se um pouco por não ter agido com tanta coragem quanto gostaria. “Obrigado”, disse ele.
“Não foi nada”, disse Pavel. “Agora você precisa ficar aí sentado um pouco, antes de sair andando novamente, está bem? Deixe a ferida repousar. E não chegue perto daquele balanço outra vez, pelo menos hoje.”
Bruno concordou e manteve a perna estendida sobre o banquinho, enquanto Pavel foi até a pia lavar as mãos cuidadosamente, limpando até sob as unhas com uma escova de arame, antes de secá-las e voltar para os legumes.
“Você dirá à mamãe o que aconteceu?”, perguntou Bruno, que havia passado os últimos minutos imaginando se seria considerado um herói, por sofrer um acidente, ou um vilão, por ter construído uma armadilha mortal.
“Acho que ela perceberá tudo sozinha”, disse Pavel, que trouxe as cenouras até a mesa e sentou-se de frente para Bruno, enquanto as descascava sobre um jornal velho.
“É, acho que sim”, disse Bruno. “Talvez ela ache melhor me levar ao médico.”
“Acho que não”, disse Pavel em voz baixa.
“Nunca se sabe”, disse Bruno, que não queria ver reduzida tão facilmente a importância de seu acidente. (Afinal, era a coisa mais emocionante que havia lhe acontecido desde que chegara lá.) “Pode ser pior do que parece.”
“Não é”, disse Pavel, que mal parecia estar escutando o que Bruno falava, as cenouras tomando toda a sua atenção.
“E como você sabe?”, perguntou rapidamente Bruno, irritado agora, apesar de aquele ser o mesmo homem que o resgatara do chão, o trouxera para casa e cuidara dele. “Você não é médico.”
Pavel parou de descascar as cenouras por um instante e olhou para Bruno do outro lado da mesa, a cabeça baixa, erguendo os olhos, como se estivesse pensando no que responder. Ele suspirou e pareceu ponderar a questão por um longo tempo antes de dizer: “Sou, sim.”
Bruno encarou-o, surpreso. Aquilo não fazia sentido para ele. “Mas você é um servente”, disse ele lentamente. “E você descasca os legumes para o jantar. Como pode ser também um médico?”
“Jovem rapaz”, disse Pavel (e Bruno gostou da cortesia de ele o chamar de ‘jovem rapaz’, e não de ‘homenzinho’, como fazia o tenente Kotler), “eu sou, de fato, médico. Só porque um homem olha para o céu à noite, isso não faz dele um astrônomo, sabia?”
Bruno não fazia idéia do que Pavel queria dizer, mas havia algo no que ele dissera que fez o menino observá-lo atentamente pela primeira vez. Era um homem de porte pequeno, bastante magro, de dedos longos e traços angulosos. Era mais velho que o pai, porém mais novo do que o avô, o que ainda lhe conferia bastante idade, e, embora Bruno jamais o tivesse visto antes de chegar a Haja-Vista, havia algo no rosto dele que sugeria que, no passado, Pavel usara barba.
Não mais.
“Não entendo”, disse Bruno, querendo chegar ao fundo da questão. “Se você é médico, então por que está servindo à mesa? Por que não trabalha em algum hospital?”
Pavel hesitou por um longo tempo antes de responder, durante o qual Bruno nada disse. Ele não sabia ao certo por quê, mas sentiu que o mais educado seria esperar até que Pavel estivesse pronto para responder.
“Antes de vir para cá, eu praticava a medicina”, disse afinal.
“Praticava?”, perguntou Bruno, que não estava familiarizado como termo. “Você não era bom, então?”
Pavel sorriu. “Eu era muito bom”, disse ele. “Sempre quis ser médico, sabe? Desde quando era um menino pequeno. Desde que tinha a sua idade.”
“Eu quero ser um explorador”, disse Bruno rapidamente.
“Desejo-lhe sorte”, disse Pavel.
“Obrigado.”
“Já descobriu alguma coisa?”
“Lá na casa de Berlim havia muita exploração para se fazer”, relembrou Bruno. “Mas é porque era uma casa muito grande, maior do que você poderia imaginar, então havia muitos lugares para serem explorados. Mas aqui é diferente.”
“Tudo aqui é diferente”, concordou Pavel.
“Quando você chegou a Haja- Vista?”, perguntou Bruno.
Pavel largou as cenouras e o descascador por um momento e pensou a respeito. “Acho que sempre estive aqui”, disse ele afinal, em voz baixa.
“Você cresceu aqui?”
“Não”, disse Pavel, balançando a cabeça. “Não cresci aqui.”
“Mas você acabou de dizer que...”
Antes que pudesse prosseguiu, a voz da mãe fez-se ouvir do lado de fora. Assim que a ouviu, Pavel saltou rapidamente da cadeira e voltou para a pia com as cenouras e o descascador e o jornal cheio de cascas, dando as costas a Bruno, abaixando a cabeça e emudecendo.
“Meu Deus, o que aconteceu com você?”, perguntou a mãe ao aparecer na cozinha, inclinando-se para examinar o curativo que cobria o corte de Bruno.
“Eu fiz um balanço, mas caí dele”, explicou Bruno. “E depois o balanço me atingiu na cabeça, e eu quase desmaiei, mas Pavel veio me ajudar, e me trouxe para casa, e limpou meus machucados, e fez um curativo em mim, que doeu muito, mas eu não chorei. Não chorei nem uma lágrima, não é mesmo, Pavel?”
Pavel voltou o corpo levemente na direção deles, mas não ergueu a cabeça. “A ferida está limpa”, disse em voz baixa, sem responder à pergunta de Bruno. “Não há com o que se preocupar.”
“Vá para o seu quarto, Bruno”, disse a mãe, que demonstrava claramente seu desagrado.
“Mas eu...”
“Não discuta comigo – vá para o seu quarto!”, insistiu ela, e Bruno desceu da cadeira, jogando o peso sobre o que decidiu chamar de perna ruim, e sentiu um pouco de dor. Ele se voltou e saiu da cozinha, mas ainda pôde ouvir a mãe agradecendo a Pavel, enquanto caminhava na direção das escadas, o que deixou Bruno feliz porque era óbvio que, se não fosse por causa de Pavel, ele teria sangrado até a morte.
Ele ouviu uma última coisa antes de subir as escadas: a última frase que a mãe disse ao servente que afirmava ser médico.
“Se o comandante perguntar, diremos que fui eu quem cuidou do Bruno.”
O que pareceu a Bruno uma coisa terrivelmente egoísta, e uma maneira de a mãe levar o crédito por algo que não fez.

O menino do pijama listrado - cap. 6 [A criada muito bem paga]

A CRIADA MUITO BEM PAGA

Alguns dias depois Bruno estava deitado na cama em seu quarto, olhando para o teto sobre a cabeça. A tinta branca estava rachada e descamando de uma maneira bastante desagradável, ao contrário da pintura da casa em Berlim, que nunca ficava arranhada e recebia uma segunda demão de tinta todo verão, quando a mãe trazia os decoradores. Naquela tarde em especial ele ficou lá deitado olhando para as rachaduras em forma de teia de aranha, estreitando os olhos para imaginar o que haveria para além delas. Pensou que poderia haver insetos morando no espaço entre o teto e a tinta, e o movimento deles seria responsável por forçar a pintura, inchando-a por dentro, provocando as rachaduras, tentando abrir uma brecha grande o bastante para que eles pudessem atravessar e procurar a saída pela janela, por onde escapariam. Nada, pensou Bruno, nem mesmo os insetos jamais optaria por ficam em Haja-Vista.
“Tudo aqui é horrível”, ele disse em voz alta, embora não houvesse ninguém presente no quarto para escutar e, de alguma maneira, ele se sentiu melhor por ter ouvido as palavras ditas, fosse como fosse. “Eu odeio esta casa, odeio meu quarto e odeio até mesmo a pintura. Odeio tudo aqui. Absolutamente tudo.”
Assim que ele terminou de falar, Maria entro pela porta carregando uma braçada de roupas devidamente lavadas, secas e passadas. Ela hesitou por um instante quando o viu ali sentado, mas depois fez uma reverência com a cabeça e caminhou em silêncio até o guarda-roupa.
“Olá”, disse Bruno, pois, embora conversar com uma criada não fosse a mesma coisa do que ter amigos com quem conversar, não havia mais ninguém para lhe fazer companhia e era bem mais saudável falar com ela do que ficar falando sozinho. Gretel não estava por perto e ele começou a se preocupar, temendo que pudesse enlouquecer por causa do tédio.
“Senhor Bruno”, disse Maria em voz baixa, separando as camisas das calças e das roupas de baixo e guardando tudo em gavetas e prateleiras separadas.
“Imagino que você esteja tão incomodada com as novidades quanto eu”, disse Bruno, e ela se voltou para encará-lo com uma expressão que sugeria não saber do que se tratava. “Tudo aqui. É horrível, não é? Você não odeia tudo isso, como eu?”
Maria abriu a boca para dizer alguma coisa, mas fechou-a com a mesma rapidez. Ela parecia estar pensando cuidadosamente na resposta, escolhendo as palavras certas, preparando-se para dizê-las, e então pensou melhor e dispensou-as por completo. Bruno a conhecia por quase toda a sua vida – ela viera trabalhar para sua família quando ele tinha apenas três anos – e eles sempre se deram bem juntos, embora ela jamais demonstrasse grandes sinais de vida. Seguia com seu trabalho, lustrando os móveis, lavando as roupas, ajudando na cozinha e nas compras, por vezes levando-o à escola e buscando-o na saída, apesar de isso ter sido mais comum quando ele ainda tinha oito anos; ao completar nove anos, ele decidiu que já tinha idade suficiente para ir e voltar sozinho da escola.
“Então você não gosta daqui?”, disse ela afinal.
“Se eu não gosto daqui?”, respondeu Bruno com uma leve risada. “Gostar daqui?”, ele repetiu, mais alto desta vez. “É claro que eu não gosto daqui! É horrível. Não há nada para se fazer, não há ninguém com quem conversar, ninguém para brincar comigo. Não vá me dizer que você está contente por termos nos mudado para cá.”
“Eu sempre gostei do jardim da casa de Berlim”, disse Maria, respondendo a uma pergunta completamente diferente. “Às vezes, quando a tarde era quente, eu me sentava ali ao sol e almoçava sob a hera junto ao lago. As flores lá eram muito bonitas. Seus perfumes. As abelhas que flutuavam ao redor delas e nunca nos incomodavam se as deixássemos em paz.”
“Então você também não gosta daqui?”, perguntou Bruno. “Acha tão horrível quanto eu acho?”
Maria franziu o cenho. “Não importa”, ela disse.
“O que não importa?”
“O que eu acho.”
“Como assim, é claro que importa”, disse Bruno, irritado, como se ela estivesse deliberadamente dificultando as coisas. “Você é parte da família, não é?”
“Não estou certa de que seu pai concordaria com isso”, disse Maria, permitindo-se um sorriso, pois ficara comovida com o que o menino acabara de dizer.
“Bem, você foi trazida para cá contra sua vontade, assim como eu. Se quer saber, estamos todos no mesmo barco. E ele está afundando.”
Por um instante Bruno achou que Maria fosse de fato lhe dizer o que estava pensando. Ela depositou o resto das roupas sobre a cama e seus punhos se cerravam, como se estivesse muito brava por causa de alguma coisa. A boca se abriu, mas congelou por um momento, como se Maria tivesse medo de tudo o que poderia dizer se permitisse a si mesma começar.
“Por favor, Maria, diga-me”, disse Bruno. “Quem sabe, se todos nós nos sentimos assim poderemos convencer o papai a nos levar de volta para casa.”
Ela desviou o olhar dele por alguns instantes silenciosos e balançou a cabeça, entristecida, antes de encará-lo novamente. “Seu pai sabe o que é melhor para nós”, ela disse. “Você precisa confiar nele.”
“Não tenho tanta certeza disso”, disse Bruno. “Acho que ele cometeu um terrível engano.”
“Então é um engano com o qual teremos que conviver.”
“Quando eu me engano, sou castigado”, Bruno insistiu, irritado pelo fato de que as regras que se aplicavam às crianças pareciam nunca se aplicar aos adultos (apesar de serem eles que aplicavam as regras). “Pai idiota”, disse em voz baixa.
Os olhos de Maria se arregalaram e ela deu um passo na direção dele, cobrindo a própria boca com as mãos num momento de horror. Ela olhou ao redor para certificar-se de que ninguém os estava ouvindo nem ouvira o que Bruno acabara de dizer. “Nunca diga isso”, ela disse. “Jamais fale uma coisa dessas sobre seu pai.”
“Não vejo por que não”, disse Bruno; ele estava um pouco envergonhado de si por ter dito tais palavras, mas a última coisa que faria era sentar e receber uma bronca quando ninguém parecia se importar com as suas opiniões.
“Porque o seu pai é um bom homem”, disse Maria. “Um homem muito bom. Ele cuida de todos nós.”
“Trazendo-nos até este fim de mundo, no meio do nada, você quer dizer? É isso que você chama de tomar conta da gente?”
“Há muitas coisas que o seu pai fez”, disse ela. “Muitas coisas das quais você deveria se orgulhar. Se não fosse pelo seu pai, onde eu estaria, afinal de contas?”
“De volta a Berlim, imagino”, disse Bruno. “Trabalhando numa bela casa. Almoçando sob a hera e deixando as abelhas em paz.”
“Você não se lembra de quando eu vim trabalhar para vocês, não é?”, ela perguntou em voz baixa, sentando-se por um instante ao lado dele na cama, coisa que jamais havia feito antes. “Como poderia se lembrar? Você tinha apenas três anos. Seu pai me acolheu e me ajudou quando eu precisava dele. Deu-me um emprego, um lar, comida. Você nunca passou fome, não é?”
Bruno franziu o cenho. Ele queria mencionar que estava um pouco faminto naquele momento, mas por fim olhou para Maria e percebeu, pela primeira vez, que nunca a havia considerado inteiramente como uma pessoa, com uma vida e uma história próprias. Afinal, ela jamais fizera outra coisa (até onde ele sabia) além de ser a criada da família. Ele nem sequer conseguira se lembrar se já a havia visto trajando outras roupas que não o uniforme de empregada. Mas ao pensar no assunto, como fazia agora, era obrigado a admitir que deveria haver mais na vida dela, além de servir a ele e à sua família. Ela devia ter pensamentos na cabeça, assim como ele. Devia haver coisas das quais ela sentia falta, amigos que gostaria de rever, assim como ele. E devia ter chorado toda noite até dormir, como teriam feito meninos bem menores e menos corajosos do que ele. Bruno notou que ela era até bonita, o que provocou nele uma sensação engraçada.
“Minha mãe conheceu seu pai quando ele era um menino da sua idade”, disse Maria após alguns momentos. “Ela trabalhava para sua avó. Cuidava das roupas dela, enquanto ela viajava pela Alemanha, quando era mais jovem. Preparava todas as roupas para os concertos – lavava-as, passava-as, consertava-as. Todos vestidos maravilhosos. E a costura, Bruno! Cada modelo parecia uma obra de arte. Não se encontram mais costureiras como aquelas hoje em dia.” Ela balançou a cabeça e sorriu, pensando naquelas memórias, enquanto Bruno escutava pacientemente. “Ela se certificava de que todos os vestidos estivessem arrumados e prontos para serem usados a qualquer momento que sua avó entrasse no camarim, antes de um espetáculo. E, depois que sua avó se aposentou, é claro que as duas continuaram amigas e minha mãe até recebia uma pensão dela, mas era uma época difícil e o seu pai me ofereceu um emprego, o primeiro que eu tive. Alguns meses mais tarde minha mãe ficou muito doente e precisou de muitos cuidados hospitalares, e o seu pai cuidou de tudo, mesmo não sendo obrigação dele. Ele pagou tudo do próprio bolso, porque ela fora amiga da mãe dele. E me acolheu no seu lar pelo mesmo motivo. E, quando ela morreu, ele também pagou por todas as despesas do funeral. Então não chame seu pai de idiota, Bruno. Não perto de mim. Isso eu não permitirei.”
Bruno mordeu os lábios. Ele esperava que Maria ficasse ao seu lado na campanha para sair de Haja-Vista, mas agora percebia por quem de fato ela tinha lealdade. E era obrigado a admitir que ficara orgulhoso do pai ao escutar aquela história.
“Bem”, ele falou, incapaz de pensar em algo inteligente para dizer, “acho que foi gentil da parte dele.”
“Sim”, concordou Maria, levantando-se e caminhando até a janela, aquela através da qual Bruno enxergava as cabanas e as pessoas lá longe. “Ele foi muito bom para mim naquela época”, ela prosseguiu em voz baixa, olhando pela janela e observando as pessoas e os soldados ao longe cuidando de suas vidas. “Ele tem muita bondade na alma, tem mesmo, o que me faz imaginar...” A voz dela sumiu enquanto os observava, e depois emitiu um soluço repentino como se fosse chorar.
“Imaginar o quê?”, perguntou Bruno.
“Imaginar o que ele... como ele pode...”
“Como ele pode o quê?”, insistiu Bruno.
O barulho de uma porta batendo veio do andar de baixo e reverberou tão alto pela casa – como o disparo de uma arma – que Bruno deu um salto e Maria soltou um pequeno grito. Bruno distinguiu passos golpeando os degraus da escada vindo na direção deles, cada vez mais rápido, e rastejou de volta à cama, apertando-se contra a parede, subitamente temendo o que poderia acontecer a seguir. Prendeu a respiração, esperando alguma encrenca, mas era apenas Gretel, o Caso Perdido. Ela meteu a cabeça no vão da porta e pareceu surpresa ao encontrar o irmão e a criada da família conversado.
“O que está havendo?”, perguntou Gretel.
“Nada”, disse Bruno na defensiva. “O que você quer? Saia daqui.”
“Saia você”, ela respondeu, embora estivessem no quarto dele, e então a menina se voltou para Maria, estreitando os olhos desconfiados. “Prepare-me um banho, está bem, Maria?”, pediu ela.
“Por que você não prepara o próprio banho?”, retrucou Bruno, ríspido.
“Porque ela é a criada”, devolveu Gretel, olhando para ele. “É para isso que ela está aqui.”
“Ela não está aqui para isso”, gritou Bruno, levantando-se e marchando na direção dela. “Ela não está aqui simplesmente para fazer coisas para nós o tempo todo, sabia? Especialmente coisas que podemos fazer sozinhos.”
Gretel encarou-o como se ele tivesse enlouquecido e então olhou para Maria, que rapidamente balançou a cabeça.
“Mas é claro, dona Gretel”, disse Maria. “Assim que terminar de arrumar as roupas de seu irmão, eu irei prontamente atendê-la.”
“Bem, não demore!”, disse Gretel, grossa – pois, ao contrário de Bruno, ela jamais parava para pensar que Maria era uma pessoa com sentimentos exatamente como os seus -, antes de marchar de volta ao próprio quarto e fechar a porta atrás de si. Os olhos de Maria não a acompanharam, mas suas bochechas haviam adquirido uma coloração rósea.
“Continuo achando que ele cometeu um terrível engano”, disse Bruno em voz baixa após alguns minutos, quando ele teve a sensação de que queria pedir desculpas pelo comportamento da irmã mas não sabia ao certo se essa era a coisa certa a fazer. Situações como aquela sempre deixavam Bruno num grande desconforto, porque, em seu coração, ele sabia que não havia motivo para faltar com a educação a ninguém, mesmo que a pessoa trabalhasse para você. Afinal, era para isso que existiam as boas maneiras.
“Mesmo assim, é melhor não dizer isso em voz alta”, disse Maria rapidamente, caminhando na direção dele com cara de quem queria lhe meter algum juízo na cabeça. “Prometa-me que não dirá.”
“Mas por quê?”, perguntou ele, franzindo o cenho. “Estou apenas dizendo o que sinto. Eu sou livre para fazer isso, não?”
“Não”, disse ela. “Não é, não.”
“Não sou livre para dizer o que sinto?”, ele repetiu, incrédulo.
“Não”, ela insistiu, a voz áspera enquanto tentava explicar a situação a ele. “Apenas não fale neste assunto, Bruno. Não percebe quanta encrenca você poderia causar? Para todos nós?”
Bruno a encarou. Havia algo em seus olhos, uma espécie de preocupação histérica, que ele jamais vira antes e que o inquietava. “Bem”, o menino murmurou, agora de pé e caminhando na direção da porta, de repente ansioso por deixá-la, “estava apenas dizendo que não gosto daqui, é só isso. Só estava jogando conversa fora, enquanto você arrumava as roupas. Não é como se eu estivesse planejando fugir ou coisa assim. Muito embora eu ache que, se fugisse, não poderia ser criticado por isso.”
“E matar de preocupação seu pai e sua mãe?”, perguntou Maria. “Bruno, se você tiver um pingo de juízo, vai ficar quieto e se concentrar nos estudos e fazer tudo o que o seu pai disser. Temos que nos manter a salvo até que tudo isto termine. Pelo menos essa é a minha intenção. Além disso, o que mais podemos fazer? Não cabe a nós mudar as coisas.”
Subitamente, e sem conseguir pensar num motivo em particular, Bruno sentiu uma irresistível vontade de chorar. Até ele ficou surpreso, piscando os olhos rapidamente algumas vezes para que Maria não percebesse seus sentimentos. Apesar disso, quando seus olhos tornaram a se encontrar, ele pensou que talvez houvesse algo de estranho no ar aquele dia, pois os olhos dela também pareciam estar se enchendo de lágrimas. Tudo isso o fez sentir-se estranho, e então o menino deu as costas a ela e rumou até a porta.
“Aonde você vai?”, perguntou Maria.
“Lá fora”, disse Bruno, com raiva. “Se é que você se importa.”
Ele andou devagar, mas, depois que deixou o quarto, aumentou o ritmo rumo às escadas e desceu em alta velocidade, com a repentina sensação de que, se não saísse logo da casa, desmaiaria. Em segundos já estava do lado de fora, e começou a correr para lá e para cá pelo passeio que levava à estrada, ansioso por alguma atividade, algo que fosse cansá-lo um pouco. À distância, viu o portão que levava à estrada que levava à estação de trem que levava à sua casa, mas a idéia de ir até lá, a idéia de fugir e ficar abandonado à própria sorte sem ninguém para ajudá-lo, pareceu ainda mais desagradável do que a idéia de ficar em Haja-Vista.

O menino do pijama listrado - cap. 5 [Proibido entrar em todos os momentos sem exeção]

PROIBIDO ENTRAR EM TODOS OS MOMENTOS SEM EXCEÇÃO

Só havia uma coisa a fazer, e era falar com o pai.
O pai não viera de Berlim no mesmo carro que eles naquela manhã. Ele tinha vindo alguns dias antes, na noite daquele mesmo dia em que Bruno havia chegado em casa e encontrado Maria remexendo nas suas coisas, até mesmo as coisas que ele escondera no fundo e que pertenciam somente a ele e não eram da conta de mais ninguém. Durante os dias que se seguiram, a mãe, Gretel, Maria, o cozinheiro, Lars e Bruno passaram todo o tempo empacotando seus pertences e carregando-os num grande caminhão para que fossem trazidos até a nova casa em Haja-Vista.
Foi nessa manhã final, na qual a casa parecia vazia e tão diferente do lar de antes, que as últimas coisas que lhes pertenciam foram metidas em malas, e um carro oficial com bandeiras vermelhas e negras na parte da frente estacionou diante da porta para levá-los embora.
A mãe, Maria e Bruno foram os últimos a deixar a casa, e Bruno acreditou que a mãe não tinha percebido a governanta ainda de pé junto a eles, porque, ao lançarem um último olhar para a sala vazia onde haviam passado tantos momentos felizes, para o lugar onde ficava a árvore de Natal, onde os guarda-chuvas molhados eram depositados durante os meses de inverno, e para o lugar onde Bruno deveria deixar os sapatos enlameados ao chegar em casa, coisa que nunca fazia, a mãe balançou a cabeça e disse algo muito estranho. “Nunca deveríamos ter recebido o Fúria para o jantar”, ela disse. “Certas pessoas e a sua determinação em progredir na carreira.”
Assim que disse isso, ela se voltou, e Bruno pôde ver que havia lágrimas em seus olhos, mas ela deu um salto quando viu Maria ali, observando-a.
“Maria”, disse ela, numa voz transtornada. “Pensei que estivesse no carro.”
“Eu já estava de saída, madame”, disse Maria.
“Eu não quis dizer...”, começou a mãe, antes de balançar a cabeça e repensar o que ia dizer. “Eu não quis sugerir a idéia de que...”
Eu já estava de saída, madame”, repetiu Maria, que aparentemente não sabia a regra de não interromper a mãe, e logo saiu pela porta e correu na direção do carro.
A mãe franziu o cenho, mas depois deu de ombros, como se nada daquilo importasse mais, fosse como fosse. “Vamos então, Bruno”, ela disse, tomando a mão dele e trancando a porta às suas costas. “Só nos resta torcer para que um dia voltemos aqui, depois de tudo isto acabar.”
O carro oficial com as bandeiras sobre o capô os levara até uma estação de trem, na qual havia dois trilhos separados por uma plataforma ampla, e em ambos os lados havia um trem esperando pelo embarque dos passageiros. Por causa do grande número de soldados marchando do outro lado, para não falar no fato de que havia uma longa cabana pertencente ao sinaleiro separando os trilhos, Bruno não pôde ver muito da multidão que lá estava, antes de embarcar junto com a família num vagão muito confortável, que trazia poucos outros passageiros, cheio de bancos vazios e ar fresco quando as janelas era abertas. Se os trens seguissem em direções diferentes, ele pensou, não pareceria estranho, porém não era o caso: estavam ambos apontados para o leste. Por um instante ele pensou em correr pela plataforma avisando aquelas pessoas dos assentos livres no seu vagão, mas mudou de idéia, pois algo lhe dizia que, se aquilo não deixasse a mãe brava, provavelmente enfureceria Gretel, o que seria ainda pior.
Desde que chegaram a Haja-Vista e à casa nova, Bruno não vira o pai. Pensou que talvez ele estivesse em seu quarto quando a porta rangeu e se abriu, mas, afinal, se tratava apenas do soldado pouco amigável que encarara Bruno sem nenhum calor nos olhos. Ele não ouvira a potente voz do pai em parte alguma, nem mesmo os pesados passos de suas botas contra as tábuas do assoalho no andar de baixo. Mas era certo que havia pessoas indo e vindo, e, enquanto pensava no que seria melhor fazer, escutou uma grande agitação subindo do térreo, e foi até o corredor para se debruçar sobre o corrimão.
Lá embaixo ele viu a porta do escritório do pai aberta e um grupo de cinco homens de pé do lado de fora, gargalhando e apertando-se as mãos. O pai estava no meio deles e parecia muito importante no uniforme recém-passado. O cabelo escuro e espesso fora obviamente penteado com brilhantina havia pouco, e, enquanto os observava de cima, Bruno se sentia ao mesmo tempo assustado e maravilhado com a presença do pai. Aos seus olhos, os outros homens não pareciam tão bonitos quanto o pai. Nem os seus uniformes eram tão alinhados quanto o dele. Tampouco as suas vozes eram tão profundas, nem as botas tão reluzentes. Todos traziam os quepes sob o braço e pareciam disputar entre si a atenção de seu pai. Bruno só conseguiu entender algumas das frases da conversa conforme se aproximavam dele.
“... cometeu erros desde o momento em que pôs os pés aqui. A coisa chegou ao ponto em que o Fúria não teve escolha senão...”, disse um deles.
“... disciplina!”, disse outro. “E eficiência. A eficiência nos falta desde 42 e sem isso...”
“... fica claro, os números não deixam mentir. É claro, comandante...”, disse o terceiro.
“... e se construirmos mais um”, disse o último, “imagine o que poderíamos conseguir... Imagine...!”
O pai ergueu uma mão no ar, o que imediatamente fez com que os outros se calassem. Era como se ele fosse o regente de um quarteto de barbearia.
“Senhores”, ele disse, e desta vez Bruno pôde compreender cada palavra, pois jamais houvera um homem tão capaz de ser ouvido de um lado ao outro do cômodo quanto o pai. “As suas sugestões e o seu apoio são muito bem-vindos. E o passado é o passado. Aqui temos a oportunidade de um novo começo, mas este começo fica para amanhã. Agora, é melhor eu ajudar minha família a se instalar, ou haverá tanta encrenca para mim aqui dentro quanto há para eles lá fora, compreendem?”
Os homens soltaram uma gargalhada e apertaram a mão do pai. Ao sair, formaram juntos uma fila, como soldados de brinquedo, e os braços se projetaram para a frente na mesma saudação que o pai havia ensinado a Bruno, a palma estendida, vinda do peito em direção ao ar em frente a eles num movimento brusco, enquanto gritavam as duas palavras que Bruno fora ensinado a repetir, sempre que alguém as dissesse para ele. Então os homens foram embora e o pai voltou ao escritório, no qual era Proibido Entrar em Todos os Momentos Sem Exceção.
Bruno desceu lentamente as escadas e hesitou durante um instante à porta. Ele se ressentia de o pai não ter subido para dizer oi desde que chegara, mas há haviam lhe explicado em diversas ocasiões o quanto o pai era ocupado, que ele não podia ser incomodado com coisas como vir falar oi para o filho o tempo todo. Mas os soldados já tinham ido embora e ele achou que não haveria problema em bater na porta.
Ainda em Berlim, Bruno só estivera no escritório do pai em raras ocasiões, e em geral era porque tinha se comportado mal e precisava de uma conversa séria. Mesmo assim, a regra que se aplicava ao escritório em Berlim era uma das mais importantes que já tinha aprendido, e Bruno não era tolo a ponto de pensar que a regra não se aplicaria igualmente aqui em Haja-Vista. Mas como já havia alguns dias que eles não se encontravam, o menino pensou que ninguém se importaria se ele batesse na porta agora.
E então ele bateu cuidadosamente na porta. Duas vezes, bem fraco.
Talvez o pai não tivesse escutado, talvez Bruno não tivesse batido forte o bastante, mas o fato é que ninguém veio até a porta, e então Bruno bateu de novo, e desta vez com mais força, e ao fazê-lo ouviu a voz retumbante vinda lá de dentro: “Entre!”.
Bruno girou a maçaneta e entrou no cômodo, adotando sua típica pose de olhos arregalados, a boca em formato de um O e os braços estendidos pendendo ao lado do corpo. O resto da casa podia ser um pouco escuro e melancólico e bastante limitado nas suas possibilidades de exploração, mas aquele cômodo era outra história. Para começar, o pé-direito era muito alto e sobre o assoalho havia um carpete no qual Bruno pensou que poderia afundar. As paredes mal eram visíveis; estavam cobertas de prateleiras de mogno escuro, repletas de livros, como aqueles que ficavam na biblioteca da casa de Berlim. Havia janelas enormes na parede diante dele, e no centro de tudo isso, sentado atrás de uma grande escrivaninha de carvalho, estava o pai, que ergueu os olhos de seus papéis quando Bruno entrou e abriu um largo sorriso.
“Bruno”, ele disse, saindo de trás da mesa e cumprimentando o garoto com um sólido aperto de mão, pois o pai não era do tipo que abraça as pessoas, ao contrário da mãe e da avó, que pareciam distribuir abraços com uma freqüência grande demais, completando o serviço com beijos melados. “Meu menino”, acrescentou ele após um instante.
“Olá, papai”, disse Bruno em voz baixa, um pouco estupefato pelo esplendor do cômodo.
“Bruno, eu estava indo lá em cima para vê-lo dentro de mais alguns minutos, juro que estava”, disse o pai. “Só precisava terminar a reunião e redigir uma carta. Vejo que vocês chegaram bem, não?”
“Sim, papai”, disse Bruno.
“Ajudou sua mãe e sua irmã a fechar a casa antiga?”
“Sim, papai”, disse Bruno.
“Então, eu estou orgulhoso de você”, disse o pai num tom de aprovação. “Sente-se, menino.”
Ele indicou uma ampla cadeira em frente à escrivaninha e Bruno escalou-a, com os pés próximos ao chão, mas sem tocá-lo, enquanto o pai retornava à sua cadeira atrás da escrivaninha para encará-lo. Eles não disseram nada um ao outro por um instante, até que finalmente o pai quebrou o silêncio.
“E então?”, perguntou ele. “O que acha?”
“O que eu acho?”, perguntou Bruno. “O que eu acho a respeito do quê?”
“A nossa nova casa. Gosta dela?”
“Não”, disse Bruno rapidamente, pois sempre tentava ser honesto e sabia que, se hesitasse mesmo que por um momento, não teria mais coragem de dizer o que pensava. “Acho que nós devíamos ir para casa”, acrescentou, destemido.
O sorriso do pai diminuiu um pouco e ele lançou o olhar sobre a carta por um instante antes de erguer os olhos novamente, como se quisesse pensar com cuidado na resposta. “Bem, estamos em casa, Bruno”, disse por fim numa voz gentil. “Haja-Vista é a nossa nova casa.”
“Mas quando poderemos voltar a Berlim?”, pergunta Bruno, com o coração apertado após a resposta do pai. “Lá é muito mais gostoso.”
“Ora, vamos”, disse o pai, não querendo entrar naquele jogo. “Deixe disso, está bem?”, pediu ele. “Nossa casa não é uma construção, ou uma rua, ou uma cidade, ou coisa alguma tão artificial quanto os tijolos e a argamassa. O lar é onde mora a família de alguém, não é mesmo?”
“Sim, mas...”
“E a nossa família está aqui, Bruno. Em Haja-Vista. Ergo, este é o nosso lar.”
Bruno não entendeu o que significava ergo, mas não precisava entender, pois tinha uma resposta inteligente para o pai. “Mas o vovô e a vovó estão em Berlim”, ele disse. “E os dois são parte da nossa família. Então, aqui não pode ser o nosso lar.”
O pai ponderou sobre isso e acenou com a cabeça. Esperou um longo tempo antes de responder. “É verdade, Bruno, eles estão lá. Mas você, e eu, e a mamãe e Gretel somos as pessoas mais importantes da nossa família, e é aqui que moramos agora. Em Haja-Vista. Agora pare de ficar emburrado por causa disso! (pois Bruno estava fazendo uma cara deliberadamente emburrada). Você nem mesmo deu uma chance a este lugar. É capaz de gostar daqui.”
“Eu não gosto daqui”, insistiu Bruno.
“Bruno...”, disse o pai com a voz cansada.
“Karl não está aqui e nem Daniel e nem Marin, e não há outras casas nas redondezas e nada de bancas de frutas e legumes nem ruas e cafés com as mesas postas do lado de fora, e ninguém para nos empurrar de poste em poste nas tardes de sábado.”
“Bruno, às vezes há coisas na vida que temos de fazer e não temos escolha a respeito delas”, disse o pai, e Bruno percebeu que ele estava se cansando daquela conversa. “E eu temo que esta seja uma dessas coisas. Este é o meu trabalho, um trabalho importante. Importante para o nosso país. Importante para o Fúria. Algum dia você entenderá.”
“Eu quero ir para casa”, disse Bruno. Ele sentia as lágrimas se acumulando nos olhos, e o que mais queria era que o pai percebesse quão horrível era aquele tal de Haja-Vista e concordasse que era hora de ir embora.
“Você precisa entender que já está em casa”, disse ele em vez disso, desapontando Bruno. “E assim será pelo futuro previsível.”
Bruno fechou os olhos por um instante. Tinham sido poucas as ocasiões em sua vida nas quais estivera tão determinado a conseguir o que queria, e certamente ele jamais se dirigira ao pai com tamanho desejo de que este mudasse de idéia a respeito de alguma coisa, mas a noção de que teriam de ficar lá, morando um lugar tão horrível onde não havia mais ninguém para brincar, tudo aquilo era demais par a cabeça do menino. Quando abriu os olhos, um momento depois, o pai havia saído de trás da escrivaninha e se acomodara numa poltrona ao seu lado. Bruno o observou abrir uma caixa de prata, retirar um cigarro e bate-lo contra a mesa antes de o acender.
“Eu me lembro de quando era criança”, disse o pai, “lembro que havia certas coisas que eu não queria fazer, mas quando meu pai dizia que seria melhor para todos se eu obedecesse, eu simplesmente seguia em frente e fazia o que tinha de ser feito.”
“Que tipos de coisas eram essas?”, perguntou Bruno.
“Ah, eu não sei”, disse o pai, dando de ombros. “Não era nada demais. Eu era apenas uma criança e não sabia o que era o melhor a fazer. Às vezes, por exemplo, eu não queria ficar em casa e terminar a lição; queria sair pelas ruas, brincando com meus amigos, assim como você, e hoje eu olho para trás e vejo como eu era tolo.”
“Então você sabe como eu me sinto”, disse Bruno, esperançoso.
“Sim, mas eu também sabia que o meu pai, seu avô, sabia o que era melhor para mim e que eu seria sempre mais feliz se simplesmente aceitasse isso. Acha que eu teria sido tão bem-sucedido na vida se não tivesse aprendido quando é hora de discutir e quando é hora de ficar com a boca fechada e seguir ordens? E então, Bruno? O que você acha?”
Bruno olhou ao redor. Seu olhar se deteve na janela que ficava no canto do cômodo, e, através dela, ele podia ver a paisagem desoladora para além do vidro.
“Você fez alguma coisa errada?”, perguntou ele após um instante. “Alguma coisa que deixou o Fúria bravo?”
“Eu?”, disse o pai, olhando surpreso para ele. “O que você quer dizer?”
“Fez alguma coisa ruim no trabalho? Eu sei que todos dizem que você é um homem importante e que o Fúria tem em mente grandes coisas reservadas a você, mas não acho que ele o enviaria para um lugar como este se você não tivesse feito alguma coisa pela qual ele quisesse castigá-lo.”
O pai riu, o que deixou Bruno ainda mais triste; nada o deixava mais bravo do que quando um adulto ria dele por não saber alguma coisa, especialmente quando ele estava tentando descobrir a resposta fazendo perguntas.
“Você não compreende o significado de uma posição como esta”, disse o pai.
“Bem, eu não acho que você tenha feito um bom trabalho, se isso significa ter de nos mudar da nossa bela casa e para longe de nossos amigos e vir morar num lugar tão horrível quanto este. Acho que você deve ter feito alguma coisa errada e talvez seja melhor pedir desculpas ao Fúria, e, quem sabe, isso encerre a questão. Talvez ele o perdoe, se você for bem sincero nos eu pedido.”
As palavras saíram antes que ele pudesse pensar se eram razoáveis ou não; depois de ouvi-las flutuando no ar, elas não pareceram o tipo de coisa que ele deveria dizer ao pai, mas lá estavam elas, já ditas, e não havia nada que pudesse fazer para retirá-las. Bruno engoliu em seco e, após alguns momentos de silêncio, olhou para o pai, que o encarava com o olhar pétreo. Bruno lambeu os lábios e desviou os olhos. Ele sentiu que seria má idéia olhar o pai nos olhos.
Depois de alguns minutos silenciosos e desconfortáveis, o pai se ergueu lentamente da poltrona ao seu lado e voltou para trás da escrivaninha, deixando o cigarro no cinzeiro.
“Eu me pergunto se você está sendo muito corajoso”, ele disse em voz baixa após um momento, como se estivesse remoendo o problema na cabeça, “em vez de simplesmente desrespeitoso. Talvez não seja uma coisa tão ruim, afinal.”
“Eu não quis dizer...”
“Mas agora você ficará em silêncio”, disse o pai, elevando a voz e interrompendo-o, porque nenhuma das regras que normalmente se aplicavam à vida familiar valia para ele. “Eu tive grande consideração pelos seus sentimentos neste caso, Bruno, porque sei que esta mudança é difícil para você. E escutei o que você tinha a dizer, muito embora a sua juventude e a falta de experiência o obriguem a formular as coisas de maneira tão insolente. E você reparou que eu não reagi a nada disso. Mas é chegado o momento de você simplesmente aceitar o fato de que...”
“Eu não quero aceitar nada!”, gritou Bruno, piscando surpreso, pois não sabia que iria pronunciar aquelas palavras em voz alta. (Foi de fato uma enorme surpresa para ele.) Ele ficou um pouco nervoso e se preparou para fugir correndo caso fosse necessário. Mas nada parecia irritar o pai naquele dia – e se Bruno fosse honesto, teria de admitir que raramente o pai ficava bravo; ele ficava quieto e distante e sempre conseguia o que queria no fim das contas -, e, em vez de gritar com ele ou persegui-lo pela casa, ele apenas balançou a cabeça e indicou que a conversa havia chegado ao fim.
“Vá para o seu quarto, Bruno”, disse ele numa voz tão baixa que o menino soube imediatamente que ele falava sério agora, e então se levantou, as lágrimas de frustração se formando nos seus olhos. Ele caminhou na direção da porta, mas, antes de abri-la, voltou-se para o pai e fez uma última pergunta.
“Pai?”, começou ele.
“Bruno, eu não vou...”, começou o pai, irritado.
“Não é isso”, disse Bruno rapidamente. “Eu só quero fazer uma outra pergunta.”
O pai suspirou, mas indicou que ele deveria fazê-la e, então, seria o fim daquele assunto, sem mais discussões.
Bruno pensou sobre a pergunta, procurando formulá-la com precisão desta vez, para que não soasse mal-educada ou pouco colaborativa. “Quem são todas aquelas pessoas do lado de fora?”, disse ele finalmente.
O pai inclinou a cabeça para a esquerda, parecendo um pouco confuso por causa da pergunta. “São soldados, Bruno”, disse ele. “E secretários. Empregados do gabinete. Você já os viu antes, é claro.”
“Não estou falando deles”, disse Bruno. “Quero saber daquelas pessoas que eu vejo da minha janela. As que moram nas cabanas, lá longe. Estão todas com as mesmas roupas.”
“Ah, aquelas pessoas”, disse o pai, acenando com a cabeça e sorrindo levemente. “Aquelas pessoas... Bem, na verdade elas não são pessoas, Bruno.”
Bruno franziu o cenho. “Não são?”, perguntou ele, sem saber o que o pai queria dizer com aquilo.
“Bem, não são pessoas no sentido em que entendemos o termo”, prosseguiu o pai. “Mas você não deve ser preocupar com elas agora. Elas não têm nada a ver com você. Não há nada em comum entre você e elas. Apenas adapte-se à nova casa e comporte-se bem, é tudo o que eu peço. Aceite a situação na qual você se encontra e tudo ficará muito mais fácil.”
“Está bem, papai”, disse Bruno, insatisfeito com a resposta.
Ele abriu a porta e o pai o chamou de volta por mais um instante, levantando-se e erguendo uma sobrancelha como se o menino tivesse esquecido alguma coisa. Bruno lembrou-se assim que o pai fez o sinal, e disse a frase e o imitou com exatidão.
Ele juntou os pés e ergueu o braço direito no ar antes de bater um calcanhar no outro e dizer numa voz tão profunda e clara quanto possível – tão parecida com a do pai quanto ele conseguia fazer – as palavras que dizia sempre que saía da presença de um soldado.
“Heil Hitler”, disse, o que Bruno presumia ser outra forma de dizer: “Bem, até logo, tenha uma boa tarde”.
 

O menino do pijama listrado - cap. 4 [O que els viram através da janela]

O QUE ELES VIRAM ATRAVÉS DA JANELA

Para começar, não eram crianças, afinal. Ao menos, não todos. Havia meninos pequenos e grandes, pais e avôs. Talvez alguns tios também. E algumas daquelas pessoas que vivem sozinhas nas ruas da vida e não parecem ter parentes. Era gente de todo o tipo.
“Quem são eles?”, perguntou Gretel, tão boquiaberta quanto o irmão costumava ficar. “Que tipo de lugar é esse?”
“Não sei bem ao certo”, disse Bruno, mantendo-se o mais fiel possível a verdade. “Só sei que não é tão gostoso quanto a nossa casa.”
“E aonde estão as meninas? E as mães? E as avós?”
“Talvez elas morem em outra parte”, sugeriu Bruno.
Gretel concordou. Ela não queria continuar olhando, mas era muito difícil voltar os olhos para outra direção. Até então, tudo o que vira fora a floresta diante de sua própria janela, que parecia um pouco escura, mas um bom lugar para piqueniques, se houvesse uma clareira mais adiante. Mas, daquele lado da casa, a vista era bem diferente.
Começava até agradável. Havia um jardim logo abaixo da janela de Bruno. E era bem grande, repleto de flores crescendo em seções bastante ordenadas, que aparentavam ser cuidadas com muito zelo por alguém que sabia que plantar flores num lugar como aquele era uma boa coisa a se fazer, como acender uma pequena vela no canto de um enorme castelo numa charneca enevoada durante uma noite escura de inverno.
Para além das flores havia um pátio bastante aprazível com um banco de madeira, onde Gretel se imaginou sentada à luz do sol lendo um livro. Havia uma placa instalada na parte superior do banco, mas ela não conseguiu lê-la àquela distância. O banco estava voltado para a casa – o que seria habitualmente estranho, mas, naquelas circunstâncias, ela compreendeu o motivo.
A uns cinco metros mais adiante no jardim e das flores e do banco com a placa, tudo ficava diferente. Havia uma enorme cerca de arame que envolvia toda a casa e se voltava para dentro no topo, estendendo-se em todas as direções para onde a vista de Gretel não alcançava. A cerca era muito alta, ainda maior do que a casa na qual estavam, e havia imensos mourões de madeira, como postes telegráficos, distribuídos ao longo dela, mantendo-a de pé. Sobre a cerca havia grandes rolos de arame farpado entrelaçados em espirais, e Gretel sentiu uma pontada inesperada de dor dentro de si ao olhar para as pontas afiadas que sobressaíam ao longo de toda a extensão.
Não havia grama do outro lado da cerca; na verdade não havia verde nenhum. Em vez disso, o chão parecia feito de uma substância arenosa, e até onde sua vista alcançava tudo o que havia eram cabanas baixas e prédios quadrados e amplos espalhados pelos arredores, e uma ou duas colunas de fumaça ao longe. Ela abriu a boca para dizer alguma coisa, mas então percebeu que não encontrava as palavras para expressar sua surpresa e fez a única coisa que podia fazer, fechando-a novamente.
“Está vendo?’, disse Bruno do canto do quarto, sentindo-se silenciosamente satisfeito consigo mesmo porque o que quer que houvesse lá fora – e fossem eles quem fossem – fora ele quem primeiro os descobrira e poderia vê-los sempre que quisesse, pois estavam do lado de fora da janela do seu quarto, e não do dela, e portanto pertenciam a ele, e ele era o rei de tudo o que eles viam, e ela era sua súdita inferior.
“Não entendo”, disse Gretel. “Quem seria capaz de construir um lugar tão assustador?”
“É mesmo assustador, não é?”, concordou Bruno. “Acho que aquelas cabanas têm apenas um andar. Veja como são baixas.”
“Devem ser casas de tipo moderno”, disse Gretel. “Papai odeia as coisas modernas.”
“Então acho que ele não vai gostar delas”, disse Bruno.
“Não”, respondeu Gretel. Ela ficou parada um bom tempo olhando para elas. Com doze anos, era considerada uma das meninas mais inteligentes da classe, então apertou os lábios e estreitou os olhos e forçou o cérebro a entender o que ela estava vendo. Ao final, só conseguiu pensar em uma explicação.
“Aqui deve ser o interior”, disse Gretel, voltando-se triunfante para encarar o irmão.
“O interior?”
“Sim, é a única explicação, não está vendo? Quando estamos em casa, em Berlim, estamos na cidade. É por isso que há tanta gente e tantas casas, e as escolas são cheias, e não dá para chegar ao centro da cidade no sábado à tarde sem ser empurrado de poste em poste.”
“Sim...”, disse Bruno, acenando com a cabeça, tentando acompanhar o raciocínio.
“Mas aprendemos na aula de geografia que no interior, onde ficam os fazendeiros e os animais, e onde a comida é produzida, há grandes áreas como esta, onde as pessoas moram e trabalham e de onde mandam toda a comida para nos alimentar.” Ela olhou pela janela novamente, para a grande imensidão diante dela e para a distância que havia entre cada uma das cabanas. “Deve ser aqui. É o interior. Talvez aqui seja nossa casa de férias”, acrescentou, esperançosa.
Bruno pensou a respeito e balançou a cabeça. “Acho que não”, disse ele com grande convicção.
“Você tem nove anos” retrucou Gretel. “Como poderia saber? Quando tiver a minha idade, você entenderá essas coisas muito melhor.”
“Pode ser que sim”, disse Bruno, que sabia que era mais jovem, mas não concordava que isso diminuísse suas chances de acertar o palpite, “só que, se aqui é o interior, como você diz, onde estão todos os animais de que você falou?”
Gretel abriu a boca para responder, mas não conseguiu pensar numa resposta adequada e então optou, em vez disso, por olhar uma vez mais pela janela e procurar pelos bichos, porém eles não estavam em parte alguma.
“Deveria haver vacas e porcos e ovelhas e cavalos”, disse Bruno. “Quero dizer, se fosse uma fazenda. Para não falar nos patos e galinhas.”
“E não há bichos aqui”, admitiu Gretel em voz baixa.
“E se eles cultivassem alguma comida aqui, como você sugeriu”, prosseguiu Bruno, divertindo-se muito, “então acho que o solo teria de ter um aspecto bem melhor do que esse, não acha? Nessa sujeira não deve dar para plantar nada.”
Gretel olhou novamente e acenou com a cabeça, pois não era tola a ponto de insistir que estava certa o tempo todo, quando estava claro que os argumentos se voltavam contra ela.
“Talvez não seja uma fazenda, então”, ela disse.
“Não é”, concordou Bruno.
“O que quer dizer que aqui talvez não seja o interior”, ela prosseguiu.
“Não, acho que não é”, ele respondeu.
Ele se sentou na cama e por um instante desejou que Gretel se sentasse ao seu lado e pusesse o braço ao seu redor e dissesse que tudo ficaria bem e que mais cedo ou mais tarde os dois aprenderiam a gostar de lá e jamais quereriam voltar a Berlim. Mas ela ainda estava olhando pela janela e desta vez não observava as flores nem o pátio nem o banco com a placa ou a cerca alta ou os postes de maneira nem os rolos de arame farpado ou o chão estéril para além deles nem as cabanas ou os pequenos prédios ou mesmo as colunas de fumaça; em vez disso, ela estava olhando para as pessoas.
“Quem são todas aquelas pessoas?”, ela perguntou em voz baixa, como se não estivesse conversando com Bruno, mas pedindo uma resposta de outra pessoa. “E o que elas estão fazendo lá?”
Bruno se levantou, e pela primeira vez eles ficaram juntos,observando, ombro a ombro, aquilo que acontecia a menos de cento e cinqüenta metros da própria casa.
Por toda parte que olhavam, viam pessoas altas e baixas, velhas e jovens, todas perambulando. Algumas ficavam imóveis em grupos, as mãos ao lado do corpo, tentando manter a cabeça erguida, enquanto um soldado marchava diante delas, abrindo e fechando a boca com rapidez como se estivesse gritando alguma coisa. Algumas formavam uma espécie de corrente, empurrando carrinhos de mão de um lado da instalação até o outro, surgindo de um lugar além do alcance da vista e levando os carrinhos mais adiante até chegarem atrás de uma cabana, onde desapareciam novamente. Algumas permaneciam perto das cabanas em grupos silenciosos, sempre olhando para o chão, como naquele tipo de brincadeira cujo o objetivo é não ser visto. Outras usavam muletas e muitas tinham ataduras em torno da cabeça. Algumas carregavam pás e eram levadas por grupos de soldados até um lugar onde não podiam mais ser vistas.
Bruno e Gretel podiam ver centenas de pessoas, mas havia ali tantas cabanas, e o campo ia tão mais longe que eles não conseguiam ver, que parecia haver milhares de pessoas lá.
“E todos morando tão perto de nós”, disse Gretel, franzindo o cenho. “Em Berlim, na nossa rua calma e agradável havia apenas seis casas. E agora são tantas. Por que o papai aceitaria um emprego aqui, num lugar tão feio e tão cheio de vizinhos? Não faz sentido.”
“Olhe ali”, disse Bruno, e Gretel seguiu com os olhos a direção que ele apontava, e viu emergir de uma cabana na distância um grupo de crianças, todas juntas, acompanhadas por soldados que gritavam com elas. Quanto mais eles gritavam, mais juntos os pequenos ficavam, mas então um dos soldados se lançou na direção do grupo e elas se separaram e fizeram o que ele parecia exigir desde o início, que era formar uma fila única. Quando assim fizeram, os soldados começaram a gargalhar e as aplaudiram.
“Deve ser algum tipo de ensaio”, sugeriu Gretel, ignorando o fato de que algumas crianças, mesmo as mais velhas, mesmo aquelas que pareciam ter a idade dela, davam a impressão de estar chorando.
“Eu falei que havia crianças aqui”, disse Bruno.
“Não são o tipo de criança com quem eu gostaria de brincar”, disse Gretel com a voz determinada. “Elas parecem imundas. Hilda e Isobel e Louise tomam banho toda a manhã e eu também. Aquelas crianças parecem nunca ter tomado banho em suas vidas.”
“Lá parece mesmo bem sujo”, disse Bruno. “Mas e se elas não tiverem banheiro?”
“Não seja burro”, disse Gretel, apesar de já ter ouvido incontáveis vezes que não deveria chamar o irmão de burro. “Que tipo de gente não tem banheiro?”
“Não sei”, disse Bruno. “Gente que não tem água quente?”
Gretel observou-os mais alguns momentos antes de ter um calafrio e se afastar. “Vou para o meu quarto arrumar minhas bonecas”, disse ela. “A vista de lá é bem mais bonita.”
Com esse comentário, ela se foi, voltando pelo corredor até o quarto e fechando a porta atrás de si, mas demorou um pouco antes de retomar a arrumação. Sentou-se na cama e muitas coisas passaram pela sua cabeça.
E um pensamento final passou pela cabeça de seu irmão, enquanto ele observava as centenas de pessoas na distância prosseguindo com seus assuntos, e era o fato de que todos eles – os meninos pequenos, os meninos grandes, os pais, os avôs, os tios, as pessoas que vivem sozinhas nas ruas da vida e não parecem ter parentes – usavam as mesas roupas: um conjunto de pijama cinza listrado com um boné cinza listrado na cabeça.
“Que coisa incrível”, ele murmurou, antes de se voltar para o outro lado.
 

O menino do pijama listrado - cap. 3 [O caso perdido]

O CASO PERDIDO

Bruno estava certo de que teria feito muito mais sentido se eles estivessem deixado Gretel para trás, em Berlim, para cuidar da casa, porque ela era só encrenca. Na verdade ele já a ouvira sendo descrita como Encrenca Desde o Primeiro Dia.
Gretel era três anos mais velha do que Bruno e fizera questão de deixar claro, desde que ele conseguia se lembrar, que, quanto aos assuntos do mundo, especialmente os eventos do mundo que diziam respeito a eles dois, ela estava no comando. Bruno não gostava de admitir que tinha um pouco de medo dela, mas se fosse honesto consigo mesmo – e ele sempre tentava ser – teria de reconhecê-lo.
Gretel tinha hábitos desagradáveis, como era de se esperar das irmãs. Ela passava muito tempo no banheiro durante as manhãs, por exemplo, e não parecia se importar que Bruno ficasse do lado de fora, pulando ora de um pé ora de outra, desesperado para usar o banheiro.
A irmã tinha uma grande coleção de bonecas dispostas em prateleiras ao redor do quarto, que observavam Bruno quando ele entrava e o seguiam por lá, registrando tudo o que ele fazia. O menino tinha certeza de que, se fosse explorar o quarto da irmã enquanto ela estivesse fora de casa, as bonecas lhe contariam tudo o que ele tivesse feito. Ela tinha também algumas amigas bastante desagradáveis, que pareciam achar muito inteligente fazer gracinhas a respeito dele, algo que Bruno jamais faria se fosse três anos mais velho do que ela. Todas as amigas desagradáveis de Gretel, acima de qualquer coisa, pareciam se deliciar em atormentá-lo, dizendo-lhe coisas inapropriadas sempre que a mãe ou Maria não estavam por perto.
“O Bruno não tem nove anos, mas apenas seis”, dizia uma monstrenga em especial, repetindo de novo e de novo numa voz cantarolante, dançando e cutucando-o entre as costelas.
“Não tenho seis anos, tenho nove”, ele protestava, tentando escapar.
“Então por que você é tão pequeno?”, indagava o mostro. “Todos os outros meninos de nove anos são maiores que você.”
Isso era verdade, e também um assunto muito delicado para Bruno. O fato de ele não ser tão alto quanto qualquer outro menino de sua classe era fonte de constantes aborrecimentos. Na verdade, ele batia na altura dos ombros dos outros meninos. Quando caminhava pelas ruas com Karl, Daniel e Martin, as pessoas às vezes o tomavam pelo irmão mais novo de algum deles, mas, na verdade, era o segundo mais velho.
“Então você deve ter apenas seis anos”, insistia a monstrenga, e Bruno saía correndo para fazer seus exercícios de alongamento, torcendo para no dia seguinte acordar uns trinta ou quarenta centímetros mais alto.
O lado bom de não estar mais em Berlim era que nenhuma delas estaria por perto para atormentá-lo. Talvez, se fossem obrigados a ficar na casa nova por algum tempo, quem sabe até um mês, quando retornassem à casa antiga, ele já tivesse crescido bastante, e então elas não poderiam mais maltratá-lo. Era algo a se pensar, afinal, se ele pretendia seguir a recomendação da mãe e fazer o melhor de uma situação ruim.
Bruno correu até o quarto de Gretel sem bater na porta e a descobriu dispondo a civilização de bonecas nas muitas prateleiras pelo quarto.
“O que está fazendo aqui?”, ela gritou, dando meia-volta. “Não sabe que não se deve entrar no quarto de uma dama sem antes bater na porta?”
“É claro que você não trouxe todas as suas bonecas para cá, não?”, perguntou Bruno, que desenvolvera o hábito de ignorar a maioria das perguntas da irmã e fazer suas próprias perguntas em vez de responder às dela.
“Claro que trouxe”, ela respondeu. “Pensou que eu as deixaria em casa? Ora, pode levar semanas até que voltemos para lá.”
“Semanas?”, disse Bruno, parecendo desapontado, mas secretamente satisfeito, pois já se resignara com a idéia de passar um mês ali. “Acha mesmo que levará tanto tempo?”
“Bem, eu perguntei ao papai e ele disse que ficaremos aqui pelo futuro previsível.”
“Mas o que é o futuro previsível exatamente?”, perguntou Bruno, sentando na lateral da cama dela.
“Quer dizer daqui a semanas”, disse Gretel com um aceno inteligente de cabeça. “Talvez até mesmo três semanas.”
“Então não é tão mal”, disse Bruno. “Desde que seja apenas pelo futuro previsível e não chegue a completar um mês. Eu detesto aqui.”
Gretel olhou para o irmão mais novo e descobriu-se concordando com ele, para variar. “Sei o que quer dizer”, disse ela. “Aqui não é muito agradável, não é?”
“É horrível”, disse Bruno.
“De fato é”, disse Gretel, reconhecendo a observação do irmão. “Agora está horrível. Mas depois que dermos um jeito na casa, provavelmente não será mais tão ruim. Eu ouvi o papai dizer que quem quer que tenha morado aqui em Haja-Vista perdeu o emprego bem rápido e não teve tempo de ajeitar o lugar para nós.”
“Haja-Vista?”, perguntou Bruno. “O que é um Haja-Vista?”
“Não é um Haja-Vista, Bruno”, disse Gretel num suspiro. “É só Haja-Vista.”
“Bem, e o que é Haja-Vista, afinal?”, repetiu ele. “Haja-Vista o quê?”
“É o nome da casa”, explicou Gretel. “Haja-Vista.”
Bruno parou para pensar a respeito disso. Ele não vira nenhuma placa do lado de fora, informando qual era o nome do lugar, nem havia nada escrito na porta da frente. Sua própria casa em Berlim não tinha nome; era apenas chamada de número 4.
“Mas o que isso quer dizer?”, perguntou ele exasperado. “Haja-Vista por quê?”
“Haja-Vista por causa das pessoas que moraram aqui antes de nós, eu acho”, disse Gretel. “Deve ter algo a ver com o fato de elas terem sumido porque não fizeram um serviço muito bom e alguém botou elas para fora e chamou alguém capaz de cumprir as tarefas direito.”
“Quer dizer o papai.”
“É claro”, disse Gretel, que sempre falava sobre o pai como alguém incapaz de causar qualquer mal e que jamais ficava bravo e sempre vinha dar-lhe um beijo de boa-noite antes de ela ir dormir, o que, se Bruno fosse realmente justo e deixasse de lado a tristeza casada pela mudança, teria de admitir que o pai fazia por ele também.
“E então nós estamos em Haja-Vista porque os coitados que moravam aqui antes foram embora?”
“Exatamente, Bruno”, disse Gretel. “Agora saia de cima da minha cama. Você está amassando tudo.”
Bruno saltou da cama e aterrissou num carpete, numa pancada surda. Ele não gostou do ruído que ouviu. Era muito oco, e o menino imediatamente decidiu que seria melhor não sair pulando pela casa com muita freqüência, ou ela era capaz de desabar sobre suas orelhas.
“Não gosto daqui”, disse pela centésima vez.
“Eu sei que não gosta”, disse Gretel. “Mas não há nada que possamos fazer a respeito, não é?”
“Eu sinto falta de Karl e Daniel e Martin”, disse Bruno.
“E eu tenho saudades de Hilda e Isobel e Louise”, disse Gretel, e Bruno tentou lembrar qual das garotas era a monstrenga.
“Acho que as outras crianças não parecem nem um pouco amigáveis”, disse Bruno, e Gretel imediatamente parou de ajeitar uma das bonecas mais horrendas na prateleira e se voltou de frente para ele, encarando-o.
“O que você disse?”
“Disse que acho que as outras crianças não parecem nem um pouco amigáveis”, repetiu ele.
“As outras crianças?”, disse Gretel, parecendo confusa. “Que outras crianças? Eu não vi nenhuma criança.”
Bruno correu os olhos pelo quarto. Havia uma janela, mas o quarto de Gretel ficava do outro lado do corredor, de frente para o dele, portanto a janela dava para uma direção completamente diferente. Tentando disfarçar, ele caminhou casualmente até a janela. Meteu as mãos nos bolsos das calças curtas e tentou assoviar uma música que conhecia, enquanto evitava olhar para a irmã.
“Bruno?”, perguntou Gretel. “O que você pensa que está fazendo? Ficou maluco?”
Ele continuou a caminhada e o assovio e prosseguiu evitando-a até chegar à janela, a qual, por um golpe de sorte, era também baixa o bastante para que ele pudesse enxergar através dela. Bruno viu do lado de fora o carro no qual haviam chegado, bem como três ou quatro outros veículos que pertenciam aos soldados que trabalhavam para o pai, alguns dos quais estavam por lá fumando e rindo de alguma coisa enquanto olhavam nervosos para a casa. Mais além, via-se a saída que vinha da estrada e, ao longe, uma floresta que parecia pronta para ser explorada.
“Bruno, você poderia, por favor, me explicar o que quis dizer com esse último comentário?”, pediu Gretel.
“Tem uma floresta ali”, disse Bruno, ignorando-a.
“Bruno!”, disse Gretel, ríspida, marchando na direção dele com tamanha velocidade que o garoto saltou da janela e se recostou na parede.
“O que foi?”, ele perguntou, fingindo não saber do que ela estava falando.
“As outras crianças”, disse Gretel. “Você disse que não parecem nem um pouco amigáveis.”
“E não parecem mesmo”, disse Bruno, sem querer julgá-las antes de conhecê-las, mas se deixando levar pelas aparências, coisa que a mãe já lhe dissera diversas vezes para não fazer.
“Mas quais outras crianças?”, perguntou Gretel. “Onde elas estão?”
Bruno sorriu e caminhou na direção da porta, indicando a Gretel que o seguisse. Ela soltou um suspiro fundo ao fazê-lo, parando para depositar a boneca na cama, mas mudou de idéia e a pegou novamente, apertando o brinquedo contra o peito, enquanto entrava no quarto do irmão, onde quase foi derrubada por Maria, que corria para fora segurando algo muito parecido com um camundongo morto.
“Elas estão lá fora”, disse Bruno, que havia chegado à sua janela outra vez e estava olhando através dela. Ele não se voltou para ver se Gretel estava no quarto; estava ocupado demais observando as crianças. Por alguns instantes até se esqueceu de que ela estava ali.
Gretel ainda estava um pouco atrás e queria desesperadamente olhar por si mesma, mas havia algo no jeito como ele falara e no jeito com que observava que a fez sentir-se nervosa. Bruno jamais fora capaz de enganá-la quanto a coisa alguma, e ela tinha certeza de que o irmão não a estava enganando agora, mas o jeito como ele olhava para fora lhe dava a sensação de que talvez não quisesse ver aquelas crianças, afinal. Ela engoliu em seco e fez uma prece silenciosa para que, de fato, voltassem logo a Berlim no futuro previsível e não tivessem que esperar um mês, conforme Bruno sugerira.
“E então?”, ele disse, voltando-se para ela e vendo-a parada na porta, agarrada à boneca, o cabelo dourado dividido simetricamente em dois rabos-de-cavalo, caídos nos ombros, convidando a um puxão. “Não quer vê-las?”
“Claro que quero”, respondeu ela, caminhando hesitante na direção dele. “Saia da frente, então”, disse, afastando-o com o cotovelo.
Aquela tarde em Haja-Vista era de um dia brilhante e ensolarado, e o sol reapareceu de trás de uma nuvem, justo no instante em que Gretel olhava para fora da janela, mas, após um instante, seus olhos se ajustaram à luz; o sol tornou a desaparecer, e ela viu a respeito do que Bruno estivera falando.
 

O menino do pijama listrado - cap. 2 [A casa nova]

A CASA NOVA
Quando Bruno viu a casa nova pela primeira vez, seus olhos se arregalaram, a boca fez o formato de um O, e os braços penderam estendidos ao lado do corpo novamente. Tudo nela parecia ser o oposto da casa antiga, e ele não podia acreditar que eles iriam de fato morar lá.
A casa de Berlim ficava numa rua calma ao longo da qual havia mais um punhado de casas grandes como a dele, e era sempre agradável olhar para elas, porque eram quase iguais à sua própria, mas não exatamente, e nelas moravam outros meninos com quem ele brincava (se fossem amigos) ou de quem mantinha distância (se fossem encrenca) A casa nova, no entanto, ficava isolada num lugar vazio e desolado, e não havia nenhuma outra casa à vista, o que significava que não haveria outras famílias por perto nem meninos com quem brincar, fossem amigos ou fossem encrenca.
A casa de Berlim era enorme, e, mesmo tendo morado lá durante nove anos, ele sempre conseguia encontrar novos cantos e passagens que ainda não tinha explorado inteiramente. Havia até mesmo cômodos – como o escritório do pai, onde era Proibido Entrar em Todos os Momentos Sem Exceção – nos quais ele estivera apenas uma ou outra vez. A casa nova, contudo, tinha só três andares: o andar de cima, onde ficavam todos os três quartos e um único banheiro, o andar térreo, com a cozinha, a sala de jantar e um escritório novo para o pai (que ele presumia apresentar as mesmas restrições do antigo), e o porão, onde dormiam os criados.
À volta toda a casa antiga de Berlim havia outras ruas com casas grandes, e, ao se chegar ao centro da cidade, havia sempre gente caminhando e parando para conversar umas com as outras, ou correndo e dizendo que não tinham tempo para parar, hoje não, não quando havia cento e uma coisas a se fazer. Eram lojas com lustrosas fachadas comerciais, e bancas de frutas e legumes repletas de bandejas em que se erguiam pilhas altas de repolhos, cenouras, couves-flores e milho. Algumas transbordavam de alho-poró e cogumelos, nabos e couves-de-bruxelas; outras estavam cheias de alface e feijões-verdes, abobrinhas e pastinacas. Às vezes ele se divertia ficando bem na frente dessas bancas, cerrando os olhos e respirando seus aromas, sentindo a cabeça rodopiar com os cheiros misturados da doçura e da vida. Mas, ao redor da casa nova, não havia outras ruas, ninguém caminhando por lá ou correndo por ali, e certamente nada de lojas, nem de bancas de frutas e legumes. Quando fechava os olhos, tudo ao seu redor parecia simplesmente vazio e frio, como se ele estivesse no lugar mais solitário do mundo. No meio de lugar nenhum.
Em Berlim havia mesas postas na rua, e, de vez em quando, ao caminhar para casa vindo da escola com Karl, Daniel e Martin, via homens e mulheres sentados nessas mesas, bebendo refrescos espumantes e rindo alto; as pessoas sentadas naquelas mesas deviam ser muito engraçadas, ele costumava pensar, porque, não importava o que dissessem, alguém sempre ria. Porém, havia algo a respeito da casa nova que fazia Bruno pensar que ninguém jamais ria por lá; que não havia motivo para riso e nada com que se alegrar.
“Acho que isso foi uma má idéia”, disse Bruno algumas horas depois de terem chegado, enquanto Maria estava desfazendo suas malas no andar de cima. (Maria não era a única criada na casa, inclusive: havia outras três, bastante magras e que só se comunicavam por meio de sussurros. Havia também um velho que, segundo lhe disseram, deveria preparar-lhes os legumes todo dia e servi-los à mesa, e cujo semblante era sempre infeliz, mas também um pouco bravo.)
“Não temos o luxo de achar coisa alguma”, disse a mãe, abrindo a caixa que continha o jogo de sessenta e quatro taças com o qual o vovô e a vovó a haviam presenteado por ocasião do casamento com o pai. “Há pessoas que tomam todas as decisões em nosso nome.”
Bruno não sabia o que ela queria dizer com isso e fingiu que a mãe nada dissera. “Acho que isso foi uma má idéia”, ele repetiu. “Acho que o melhor a fazer seria esquecer tudo isto e simplesmente voltar para casa. Podemos considerar que valeu como experiência”, acrescentou ele, frase que aprendera recentemente e que estava determinado a empregar com a maior freqüência possível.
A mãe sorriu e depositou os copos cuidadosamente sobre a mesa. “Tenho mais uma frase para você aprender”, ela disse. “É a seguinte: temos que procurar fazer o melhor de uma situação ruim.”
“Bem, eu não sei se temos mesmo”, disse Bruno. “Acho que você devia dizer ao papai que você mudou de idéia e que, bem, se tivermos de ficar aqui pelo resto do dia e jantar aqui esta noite e dormir aqui já que estamos cansados da viagem, então tudo bem, mas seria melhor levantar bem cedo amanhã, se quisermos chegar a Berlim antes da hora do chá.”
A mãe suspirou. “Bruno, por que você não sobe logo e vai ajudar a Maria a desfazer as suas malas?”, ela perguntou.
“Mas não faz sentido desfazer as malas se nós só vamos...”
“Bruno, vá logo, por favor!”, disse ela, ríspida, pois aparentemente não havia problema se ela o interrompesse, embora na situação contrária não funcionasse assim. “Estamos aqui, já chegamos, e este será nosso lar durante o futuro previsível, e é melhor que tentemos aproveitar o que for possível. Está entendendo?”
Ele não sabia o que queria dizer “futuro previsível” e disse isto a ela.
“Significa que é aqui que nós moramos agora, Bruno”, disse a mãe. “E chega deste assunto.”
Bruno sentiu uma dor na barriga e percebeu algo crescendo dentro dele, alguma coisa que, quando conseguisse sair das maiores profundezas de dentro dele até o mundo exterior, o faria gritar e berrar que tudo aquilo era errado e injusto e um grande engano pelo qual alguém haveria de pagar algum dia, ou, em vez disso, simplesmente o faria desmanchar-se em lágrimas. Ele não conseguia compreender como tudo acontecera. Num dia ele estava perfeitamente alegre, brincando em casa, com os três melhores amigos da vida toda, escorregando pelos corrimãos, tentando ver toda a cidade de Berlim da ponta dos pés, e agora estava encalhado nesta casa fria e desagradável, com três criadas sussurrantes e um servente que era a um só tempo infeliz e bravo, onde ninguém parecia ser capaz de rir novamente.
“Bruno, quero que suba e desfaça as malas e quero que vá agora”, disse a mãe numa voz pouco amigável, e ele sabia que ela estava falando sério, então deu meia-volta e marchou para o outro lado, sem dizer mais nenhuma palavra. Ele sentia as lágrimas brotando sob seus olhos, mas estava determinado a não deixa-las aparecer.
Bruno subiu as escadas e virou-se lentamente numa volta completa, na esperança de encontrar uma pequena porta ou cubículo que pudesse afinal ser explorado decentemente, mas não havia nada. Naquele piso havia apenas quatro portas, duas de cada lado, de frente umas para as outras. A porta de seu quarto, a porta do quarto de Gretel, a porta do quarto da mãe e do pai e a porta do banheiro.
“Aqui não é minha casa e nunca vai ser”, ele murmurou, enquanto atravessava a sua própria porta para encontrar todas as suas roupas espalhadas sobre a cama e as caixas de brinquedos e livros ainda fechadas. Era óbvio que Maria não tinha estabelecido suas prioridades direito.
“Mamãe mandou eu ajudar”, ele disse baixinho, e Maria acenou e apontou para uma sacola grande, contendo todas as suas meias, e cuecas, e camisetas.
“Se você separar tudo isto, pode colocar no baú de gavetas bem ali”, ela disse, apontando para um baú grosseiro que ficava do outro lado do quarto, junto a um espelho coberto de pó.
Bruno suspirou e abriu a sacola; estava cheia até a boca com as suas cuecas, e ele queria apenas rastejar para dentro dela e torcer para que, quando tornasse a rastejar para fora, ele acordasse e estivesse em casa novamente.
“O que você acha de tudo isso, Maria?”, ele perguntou após um longo silêncio, pois sempre gostara de Maria e a considerava um membro da família, embora o pai dissesse que ela era apenas uma criada, e muito bem paga por sinal.
“Tudo isso o quê?”, perguntou ela.
“Isso”, disse ele, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. “Vir a um lugar como este. Não acha que cometemos um grave engano?”
“Isto não cabe a mim dizer, senhor Bruno”, disse Maria. “Sua mãe já lhe explicou sobre o trabalho de seu pai e...”
“Ah, eu já cansei de ouvir sobre o trabalho do meu pai”, disse Bruno, interrompendo-ª “É só disso que se fala, se é que você não sabe. O trabalho do papai isso e aquilo. Bem, se o trabalho do meu pai significa que temos de mudar da nossa casa, para longe do corrimão-escorregador e dos meus três melhores amigos, então acho que meu pai devia pensar duas vezes a respeito do trabalho dele, não acha?”
Neste exato momento houve um ranger no corredor do lado de fora, e Bruno viu a porta do quarto da mãe e do pai se abrir, deixando uma pequena fresta à vista. Ele congelou, incapaz de se mover por um momento. A mãe ainda estava no andar de baixo, o que significava que o pai estava lá dentro e era bem capaz que tivesse escutado tudo o que Bruno acabara de dizer. Ele observou a porta, mal ousando respirar, imaginando se o pai sairia de lá e o levaria para baixo para uma conversa séria.
A porta se abriu mais, e Bruno deu um passo atrás conforme apareceu uma figura, porém não era o pai. Era um homem bem mais jovem, e também mais baixo que o pai, embora usasse um tipo de uniforme igual, mas sem o mesmo número de condecorações. Ele parecia muito sério, e o quepe estava bem preso à cabeça. Ao redor das têmporas, Bruno viu que seu cabelo era bem loiro, num tom de amarelo quase sobrenatural. Ele trazia uma caixa nas mãos e caminhava em direção à escada, no entanto parou por um instante quando viu Bruno ali o observando. Ele mediu o garoto de cima a baixo, como se jamais tivesse visto uma criança antes e não soubesse ao certo o que fazer com uma: se devia comê-la, ignorá-la ou chutá-la escada abaixo. Em vez disso, acenou brevemente com a cabeça e seguiu seu caminho.
“Quem era esse?”, perguntou Bruno. O jovem parecera tão sério e ocupado que ele presumiu ser uma pessoa de grande importância.
“Creio que era um dos soldados de seu pai”, disse Maria, que ficara bem ereta quando o jovem apareceu e mantivera as mãos diante de si como numa prece. Ela voltara os olhos para o chão em vez de olhar para o seu rosto, como se temesse ser transformada em pedra se olhasse diretamente para ele; e só relaxou quando o jovem se foi. “Nós vamos conhecê-los com o tempo.”
“Acho que não gostei dele”, disse Bruno. “Ele era sério demais.”
“Seu pai também é muito sério”, disse Maria.
“Sim, mas ele é o papai”, explicou Bruno. “Pais devem ser sérios. Não importa se são quitandeiros ou professores ou chefs de cozinha ou comandantes”, disse ele, relacionando todas as profissões que sabia serem exercidas por pais decentes e respeitáveis e em cujos títulos pensara mil vezes. “E não acho que aquele homem se parecia com um pai. Embora ele fosse muito sério, não há dúvida disso.”
“Bem, eles têm empregos muito sérios”, disse Maria com um suspiro. “Ou ao menos é o que eles pensam. Mas, se eu fosse você, ficaria longe dos soldados.”
“Parece que não há outra coisa a se fazer por aqui além disso”, disse Bruno, triste. “Acho que não haverá sequer outras crianças com quem brincar além de Gretel, e que graça há nisso afinal de contas? Ela é um Caso Perdido.”
Ele sentiu como se fosse chorar novamente, mas se conteve, pois não queria parecer um bebê na frente de Maria. Olhou ao redor do quarto sem erguer completamente os olhos do chão, tentando ver se havia algo de interessante para ser achado. Não havia. Ou não parecia haver. Mas, então, uma coisa lhe chamou a atenção. No canto do quarto que ficava de frente para a porta havia uma janela do teto descia pela parede, um pouco como aquela no andar de cima da casa de Berlim, ainda que não tão alta. Bruno observou-a e pensou que poderia ver o lado de fora sem mesmo ter de ficar nas pontas dos pés.
Ele caminhou lentamente na direção da janela, na esperança de que fosse possível ver todo o caminho de volta até Berlim, e a sua casa e as ruas ao redor e as mesas onde as pessoas se sentava e bebiam os refrescos espumantes e contavam histórias hilariantes umas às outras. Andou devagar porque não queria se decepcionar. Mas era apenas o quarto de um menino pequeno e não havia muito espaço para caminhar até chegar à janela. Bruno pôs o rosto junto ao vidro e olhou o que estava do lado de fora, e desta vez, quando seus olhos se arregalaram e a boca fez o formato de um O, as mãos ficaram bem juntas ao corpo, porque havia algo que o fez se sentir muito inseguro e com frio.